A objeção de consciência e seu histórico
A objeção de consciência é a recusa de obedecer que o cidadão possa opor à autoridade pública, quando esta convoca para o serviço militar ou para empunhar as armas em caso de guerra. Os motivos dessa recusa são motivos de ideologia pessoal ou de foro interno, geralmente de índole religiosa, moral e humanitária.
Em sentido mais largo «objeção de consciência» pode significar qualquer tipo de resistência às ordens da autoridade pública por razões de índole moral. Entendida nesta acepção ampla, a objeção de consciência foi a atitude dos mártires cristãos, que não se quiseram render às intimações do governo romano pagão. Hoje em dia, porém, não se designaria a posição dos mártires por meio de tal expressão; esta fica reservada para a recusa do uso de armas, seja no quartel, seja numa frente de guerra.
A objeção de consciência e as tentativas de a justificar não são algo de recente na história do gênero humano. Contudo somente nos últimos tempos é que se têm multiplicado os casos e discutido de maneira sistemática as questões filosóficas e religiosas que se prendem ao assunto; toda a problemática é também chamada «pacifismo» ou «princípio da não violência».
Terreno propicio para se alegar a objeção de consciência foi a mentalidade subjetivista que se disseminou no Ocidente a partir do século XVI, por influência da Reforma Luterana. Com efeito, o discípulo de Lutero julga ser iluminado diretamente pelo Espírito Santo em sua consciência; dai a facilidade com a qual toma atitudes que não precisam de ser justificadas aos olhos dos homens e que lhe parecem perfeitamente legítimas perante Deus. — Em particular, interpretando a Sagrada Escritura segundo os critérios do livre exame, não poucos protestantes asseveraram que a Bíblia Sagrada tem por ilícito qualquer tipo de guerra; por conseguinte, a Escritura também condenaria o serviço militar a ser prestado no quartel em tempo de paz. É geralmente o quinto mandamento da Lei de Deus («Não matar») que se invoca nesses casos. Algumas seitas protestantes, assim como certas correntes hinduístas e orientais, chegam a fazer do «pacifismo» ou do «princípio de não violência» um verdadeiro dever religioso; portanto não obedecer às convocações militares das autoridades públicas, principalmente não marchar para a guerra, seria obrigação de consciência ou de religião para os membros de tais comunidades; é o que se dá, por exemplo, com os Menonitas, os Dunkers, os Schvenkenfelders, os Shakers, os Testemunhas de Jeová.
Vão aqui citados alguns dados numéricos referentes ao assunto, apesar do que eles possam ter de estatístico e incompleto.
De 1914 a 1915, na Suíça foram julgados 350 casos de objeção de consciência, dos quais 206 eram devidos a motivos religiosos, 77 a razões de índole moral, e 67 a razões políticas.
Durante a guerra mundial de 1939/1945, registraram-se no Canadá 10.700 casos de objeção de consciência. No mesmo período, os Estados Unidos conheceram 30.000 casos de objetantes, em maioria menonitas e «quakers».
As autoridades governamentais, nos diversos países do globo, têm tomado atitudes várias diante da objeção de consciência. As legislações da Inglaterra, da Austrália, do Canadá, da Nova Zelândia, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Holanda e da Finlândia reconhecem o direito à objeção de consciência e estipulam um procedimento especial, assaz liberal, para com os objetantes; a estes assinala-se, em lugar do serviço militar, outro encargo de utilidade pública. Em certas nações, como nos Estados Unidos, apenas se aceita a objeção de consciência inspirada por motivos religiosos. Nos demais países, tal recusa do cidadão é considerada ilegal e passível de penas devidas à infração da lei ou à desobediência.
Vejamos agora o que pensa a Moral católica a tal propósito.
Objeção de consciência e Moral católica
Até época bem recente os moralistas católicos rejeitavam unanimemente a objeção de consciência. Nos últimos decênios, porém, principalmente após a segunda guerra mundial, as opiniões se dividiram entre a afirmativa e a negativa. Sendo assim, exporemos os argumentos do debate e, por fim, procuraremos tomar posição segura na controvérsia.
1) Em favor da objeção de consciência propõem-se motivos de índole religiosa e moral:
a) no plano religioso, asseveram os autores que o uso da violência e, por conseguinte, a guerra são contrários ao Evangelho, o qual manda não resistir ao mal (cf. Mt 5, 39) e recomenda brandura ou mesmo amor para com os inimigos (cf. Mt 5,44); todo o sermão sobre a montanha (Mt 5-7), dizem, está penetrado desta mensagem, que portanto há de ser considerada como um dos ensinamentos capitais do Cristianismo.
Ademais, acrescentam, o quinto mandamento da Lei de Deus («Não matar») obriga não somente os indivíduos, mas também os Estados, de modo que a estes não é licito fazer guerra nem convocar os cidadãos para tal fim. Tal posição parece corroborada pelo testemunho de escritores cristãos dos séc.IV/V, como Tertuliano, Orígenes, Latâncio, testemunho do qual se pretende deduzir que a antiga Igreja era contrária ao serviço militar.
b) No plano da Moral, afirmam os autores que as guerras modernas raramente são justas (para não dizer que são sempre injustas), pois os males que elas produzem costumam ser muito mais vultuosos do que os bens que elas visam defender ou proporcionar. Ora, já que cooperar com a injustiça é moralmente ilícito, torna-se lícito, ou mesmo obrigatório, aos cidadãos subtrair-se a qualquer convocação para a guerra ou para o serviço militar (pois este é etapa preparatória de futuros conflitos).
Dizem mais: todo indivíduo está obrigado a seguir os ditames de sua consciência, desde que ela lhe fale com clareza (cf. a respeito da consciência e da sua obrigatoriedade «P. R.» 40/1961, qu. 6). Por conseguinte, se alguém alega não obedecer a determinada lei por motivo de consciência, o Estado tem o dever de respeitar tal cidadão e não o pode forçar a obedecer. Pode acontecer, sim, que a consciência do objetante esteja mal formada e, por conseguinte, profira ditame errado; então, asseveram os autores, toca ao Estado o direito ou o dever de esclarecer as consciências; não lhe será licito, porém, violentá-las, obrigando os cidadãos a agir contra a sua consciência.
Os defensores da objeção de consciência lembram outrossim que os Papas Leão XIII e Bento XV .reprovaram o recrutamento militar obrigatório (cf. «P. R.» 34/1960, qu. 6, pág. 436). Por fim, tais moralistas consideram as leis referentes ao serviço militar como leis meramente penais, isto é, leis que não obrigam em consciência, ficando apenas o cidadão sujeito a sofrer a respectiva sanção caso seja depreendido a transgredir a lei.
2) Contra a objeção de consciência e o pacifismo ou o princípio da não violência.
a) O uso da violência, dizem, e, por conseguinte, a guerra são em si mesmos algo de moralmente indiferente, podendo tornar-se atos bons ou maus segundo a finalidade à qual se destinem: se este objetivo for a defesa de algum direito individual ou social, o uso de armas será justo (caso não haja outro meio de reivindicar o bem); em caso contrário, será injusto. Donde se vê que nem toda e qualquer guerra é ilícita, e que querer subtrair-se sistematicamente, ou por princípio, à guerra ou ao serviço militar exigido pelo Estado vem a ser atitude errônea e culposa. Se a violência nunca fosse lícita, não se poderia tolerar nem mesmo a existência de polícia armada para a tutela da ordem pública. É de prever que então os maus se aproveitariam da oportunidade para desencadear apaixonadamente o crime e a injustiça no mundo. O Cristianismo nesse caso, em nome do qual os pacificistas se absteriam de violência, seria fator de desordem no mundo e de domínio do mal sobre o bem; a doutrina de Cristo se desprestigiaria por completo.
Mas, replicam muitos, a guerra hoje em dia é mais violenta e nociva do que outrora; os bens que possa reivindicar, geralmente não compensam os males que ela acarreta. — Em resposta, será preciso lembrar que este estado de coisas não afeta o direito que o bem tem de prover à sua legítima e necessária defesa; apenas dever-se-á cuidar de que não se empregue violência desnecessária, arbitrária ou às cegas. Se a guerra moderna é exageradamente violenta, toca aos beligerantes o dever de a mitigar, sem que, por isto, seja extinto o direito (ou mesmo, em alguns casos, o dever) de guerra.
b) O conceito de bem comum exige que todos os cidadãos, usufruindo dos benefícios da vida social, colaborem na defesa dos legítimos interesses da sociedade, desde que estes sejam postos em perigo. O bem comum, do qual está encarregado o governo civil, pode exigir que os cidadãos se empenhem em salvaguardá-lo, mesmo com risco de sofrer detrimento em seus bens particulares ou em sua própria vida.
São estes os dois principais argumentos que bons moralistas costumam propor contra a objeção de consciência. Faz-se mister agora examinar como respondem às razões apresentadas pelos pacifistas absolutos:
a’) em se tratando de conflitos internacionais e de serviço militar, é vão o apelo aos conselhos evangélicos. Estes têm em vista a santificação do individuo, e supõem a vida eterna, na qual Deus dará a recompensa aos sacrifícios aceitos por amor dEle aqui na terra. Não podem rigorosamente ser aplicados às coletividades ou às nações, pois estas, como tais, não subsistirão na vida eterna, na qual serão compensadas as renúncias empreendidas no mundo atual. O conceito de «não-resistência ao mal», caso fosse indiscriminadamente aplicado às sociedades, permitiria que o mal ficasse impune e a ordem fosse continuamente burlada. É preciso mesmo dizer que às autoridades civis não é licito renunciar a certas medidas fortes ou violentas, pois, renunciando, prejudicariam os direitos dos súditos, que elas têm a obrigação de defender.
b’) Quanto ao preceito divino de não matar, sabe-se que não tem o sentido absoluto que lhe atribuem os pacifistas. Verdade é que todo ser humano tem direito à vida; há, porém, casos em que o deve ceder às exigências do bem comum; entre esses casos, está aquele em que a nação precisa de se defender legitimamente. Cf. «P. R.» 22/1959, qu. 4; 34/1960, qu. 6; 7/1957, qu. 15, a respeito da liceidade da guerra, do serviço militar e da pena de morte.
c’) Com referência ao presumido direito que as consciências individuais teriam, de ser respeitadas de maneira absoluta, deve-se dizer: tal conceito está contaminado pelo erro moderno do subjetivismo moral.
Inegavelmente, a consciência constitui a norma de conduta à qual o individuo tem que se sujeitar. Contudo esta norma subjetiva não possui o direito absoluto de se afirmar na vida social, pois tal norma pode estar errada (há consciências mal formadas); ora é preciso que a vida social seja regida por normas autênticas ou pelo direito objetivo (tal como ele é em si, independentemente da apreciação subjetiva deste ou daquele individuo). Donde se segue que quem de boa fé possui consciência errônea, tem apenas o direito de não ser incomodado na sua vida pessoal e de não ser constrangido pelo Estado a mudar de opinião no seu foro íntimo; desde, porém, que queira agir na sociedade, deverá conformar-se às normas da justiça objetiva. Se assim não fosse, abalar-se-iam os fundamentos da vida social; com efeito, toda e qualquer lei ficaria dependendo da aceitação dos respectivos súditos; estes, em nome de razões que só eles saberiam avaliar, se poderiam dar por desobrigados da lei ou isentos de cumprir seus deveres sociais. Tal atitude redundaria em total anarquia da coletividade.
Não se diga que os direitos da consciência subjetiva ficariam restritos apenas ao caso da guerra e da «objeção de consciência»’. Ilusória seria esta restrição, pois afetaria um principio geral (autonomia da consciência subjetiva) que ou é válido e autêntico; então aplica-se a todo c qualquer caso análogo; ou não é válido nem autêntico: então não se aplica a caso algum.
d”) Que dizer da condenação mais de uma vez proferida pela autoridade eclesiástica sobre a obrigatoriedade do serviço militar?
— A condenação é legitima em si. Contudo não pretende ser incondicional, de modo a valer em toda e qualquer situação. Na prática, será sempre necessário levar em conta as circunstâncias precisas em que vive a sociedade.. Ora acontece que hoje em dia todas as nações mantêm exércitos permanentes; dentro desse quadro um povo que quisesse viver desarmado (sem seguro acordo prévio com os demais povos, coisa que dificilmente se pode obter), arriscaria a sua própria subsistência; a falta de segurança em que viveria essa sociedade, seria um mal maior do que o serviço militar destinado a prover à subsistência e ao bem comum da nação; nessas circunstâncias toca à autoridade pública não sòmente o direito, más até o dever, de impor o serviço militar (desde que este seja o meio oportuno para garantir o bem-estar coletivo). Aos indivíduos assim convocados não será licito opor «objeção de consciência».
Embora se possa admitir, com alguns moralistas, que as leis de recrutamento para o serviço militar em tempo de paz sejam leis meramente penais, o mesmo não se dirá do chamado às armas ou da mobilização militar decretada para repelir uma injusta agressão. Só se conceberia que um cidadão se furtasse à mobilização caso se tratasse de guerra evidentemente injusta.
e’) Errôneo seria apelar para o procedimento de antigos cristãos como se tivessem condenado peremptoriamente o serviço militar e a guerra. Quando se pronunciavam contrariamente à milícia romana, tinham em vista os aspectos de paganismo e imoralidade que a esta se prendiam, não, porém, o serviço das armas como tal. Cf. «P. R.» 34/1960, qu. 6 (explanação histórica assaz minuciosa).
Não será preciso alongar aqui a discussão do tema. De resto, já foi demonstrada a legitimidade da guerra e do serviço militar em «P. R.» 22/1959, qu. 4 e 34/1960, qu. 6. Passemos, portanto, à
Conclusão
Dos debates do problema depreende-se que o pacifismo ou o princípio da não violência (mesmo quando apoiado em alguma «objeção de consciência») muitas vezes equivale a uma fuga ou a uma infração da lei. Tomado como norma geral de conduta, não encontra justificativa nem na Moral cristã nem no Direito natural. Torna-se, portanto, passível de sanção.
Acontece, porém, que as situações políticas nacionais e internacionais são, em geral, muito complexas, principalmente em nossos dias, quando muitas ideologias se chocam; oferecem à consideração do observador aspectos múltiplos e, por vezes, desconexos. Doutro lado, cada cidadão tem sua consciência impenetrável aos olhos do público e das próprias autoridades; somente Deus é o justo Juiz das consciências. Por isto, os moralistas católicos julgam que, embora o pacifismo e a objeção de consciência, tomados em si como atitudes sistemáticas, sejam ilícitos, na prática não se pode desaprovar o Governo que queira usar de tolerância para com os súditos que, num ou noutro caso especial, alegam «objeção de consciência». Se esses súditos recusam empunhar as armas, não chegam a pôr em perigo a subsistência da pátria, o Estado pode-lhes reconhecer o direito subjetivo de se retrair do exército. Contudo, a fim de ter certeza da sinceridade ou da lealdade desses cidadãos, convém que os legisladores em cada país elaborem um «Estatuto próprio da objeção de consciência», estipulando certas condições para que a objeção de consciência possa ser considerada honesta. Entre outros recursos, sugerem alguns autores que as pessoas que alegam objeção de consciência contra o serviço militar e a guerra, sejam submetidas a outro serviço de utilidade pública; sujeitando-se a esta cláusula, tais cidadãos dariam prova evidente de que realmente são sinceros ao objetar, em vez de ser vítimas de covardia e inimigos do bem comum.