A questão do autor do Pentateuco não é mero problema de literatura e história. Envolve a filosofia e a teologia, pois a ela se prende a nossa maneira geral de conceituar o Judaísmo e o Cristianismo. Com efeito, se Moisés, chefe e libertador do povo de Israel no séc. XIII a. C., é o autor dos cinco livros citados, pode-se admitir a índole sobrenatural da religião judaica e, por conseguinte, do Cristianismo. Se, porém, o Pentateuco teve origem posterior a Moisés e foi falsamente atribuído a este personagem, a religião de Israel e a sua continuação no Cristianismo estão baseadas sobre o erro ou mesmo sobre a mentira e a fraude; nada têm de sobrenatural, fazendo-se mister então reformar nosso conceito tradicional de Cristianismo. Daí o interesse que racionalistas e cristãos dedicam ao estudo do assunto.
Embora o católico saiba que a sua fé nada tem a recear da parte dos críticos, não lhe é vedado (pode-se mesmo tornar recomendável) considerar os termos dos debates movidos em torno de Moisés e do Pentateuco. Devidamente conduzidos, esses estudos podem beneficiar a fé, pois lhe dão por base um mais claro conhecimento dos desígnios da Providência.
Guiados desde já por esta perspectiva, abaixo examinaremos, em primeiro lugar, um pouco do histórico da questão; a seguir, referiremos os princípios de solução propostos pela sadia exegese contemporânea.
O histórico da questão
Até o séc. XVI
1) testemunhos do próprio Pentateuco. Lê-se explicitamente no Pentateuco que Moisés escreveu ao menos certos episódios do Livro Sagrado:
- assim a batalha de Israel contra os amalecitas (Êx 17,8-13); cf. Êx 17 4′
- as íeis «Código da Aliança» (Êx 20,23-23,33); cf. Êx 24,4;
- as condições da Aliança (Êx 34,11-26); cf. Êx 34,27;
- as etapas da caminhada no deserto (Núm 33,2-49); cf. Núm 33,2;
- a peça poética que comumente é dita «cântico de Moisés» (Dt 32,1-43); cf. Dt 31,22;
- uma lei entregue aos levitas, a qual, segundo o contexto, bem poderia ser quase o livro inteiro do Deuteronômio (cf. Dt 31,9. 24).
Os estudiosos presumiram que Moisés tenha redigido ainda outras passagens do Pentateuco, pois sòmente assim se explicaria a designação «Livro da Lei de Moisés» ou «Lei de Moisés», frequente na tradição judaica para designar os cinco primeiros escritos da Bíblia. Com efeito; tenham-se em vista:
2) testemunhos das Escrituras do Antigo Testamento. Há menção do…
- «Livro da Lei de Moisés», em Jos 8,31; 23 ;6; 4 Rs 14,6;
- «Livro de Moisés», em 4 Rs 2,3; 2 Crôn 35,12; Esdr 6,18; Ne 13,1;
- «Livro da Lei do Senhor dada por meio de Moisés», em 2 Crôn 3414*
- «Lei de Moisés», em 2 Crôn 23,18; Bar 2,2; Dan 9,11.13.
Levem-se em conta ainda algumas passagens dos Profetas em que a redação do Pentateuco é associada a Moisés: Os 8, 12; Jer 31,33; Am 2,9s; 4,11; Is 1, 11-14; Bar 2,27s.
O depoimento desses textos parece corroborado pela autoridade dos
3) testemunhos do Novo Testamento.
Também o Senhor Jesus se referiu ao «livro de Moisés» (Mc 12,26), à «Lei dada por Moisés» (Jo 7,19). Asseverou que Moisés escreveu a respeito de Jesus, mas que os judeus não acreditavam nele (Jesus), porque não davam fé nem mesmo aos escritos de Moisés (Jo 5,46s). Certas prescrições do Pentateuco são tidas pelo Senhor como prescrições de Moisés: assim a circuncisão (Lev 2,3;cf. Jo 7,22): o libelo de repúdio à esposa (Dt 24,1; cf. Mc 10,3-5; Mt 19,8); a oblação do leproso curado (Lev 13,49; 14,2-32; cf. Mt 8,4; Le 5,14).
Também os contemporâneos de Jesus atribuíam a Moisés as leis do Pentateuco; assim, os fariseus (cf. Mt 19,7; Jo 8,5; At 6,14), os Saduceus (cf; Mt 22,24), os discípulos de Cristo (cf. Jo 1,45). ” Tal modo de pensar reaparece nos escritos dos Apóstolos: At 3,22s (cf. Dt 18,15,39; 7,37; Lev 23,29); At 7,37s; 28,23; Rom 10,5 (cf. Lev 18,5; Dt 30,12s); Rom 10,19 (cf. Dt 32,21); 1 Cor 9,9. Além desses, merecem ponderação os
4) testemunhos da tradição judaica e cristã.
Pode-se dizer que até o séc. XVI era quase unânime a afirmação de que Moisés escrevera o Pentateuco, de tal modo que parece inútil transcrever aqui algum depoimento. Interessa apenas realçar como essa crença estava arraigada: segundo os escritores judeus Flávio José (+102/103 d. c.) e Filão de Alexandria (+ cerca de 50 d c ) terá sido o próprio Moisés quem em Dt 34 escreveu antecipadamente a narrativa da sua morte (cf. Ant. IV 8,48; Vita Moisis II 51).
Eis, porém, que nos tempos modernos se modificou o pensamento dos exegetas, aguçados por senso crítico assaz perspicaz, assim como por conhecimentos mais exatos de história, linguística e literatura antigas. Aos poucos foram percebendo que a questão da redação do Pentateuco é mais complexa do que se pensava; esta se deve ter processado por etapas e pela colaboração de mãos diversas.
Consequentemente começaram a ser propostas teorias diversas a respeito das origens do livro da Lei de Israel. Voltemos nossa atenção para essa segunda fase da história da exegese do Pentateuco.
Do séc. XVI aos nossos dias.
Após tímidos ensaios inovadores nos séc. XVI e XVII, iniciou-se propriamente no séc. XVIII a chamada «Crítica do Pentateuco».
Costuma-se indicar como protagonista da nova atitude exegética o médico francês da corte de Luís XV, Jean Astruc, católico convertido do calvinismo. Em 1753, Astruc propunha suas ideias no livro «Conjectures sur les mémoires originaux dont il par oit que Moyse s’est servi pour composer le livre de la Genèse»: tendo observado o uso de certos vocábulos e, em particular, o dos nomes de Deus — Javé e Eloim — no livro do Gênesis e nos dois primeiros capítulos do Êxodo, concluía que, além de fontes menores, quatro principais documentos haviam concorrido para a confecção do Gênesis; desses, dois lhe pareciam sobressair pela sua importância: o documento Eloístico (no qual a designação Eloim predominava) e o documento javistico (no qual Javé era muito mais frequente). Assim surgiu a «teoria dos documentos».
Como se compreende, esta hipótese nos decênios seguintes foi reestudada e retocada de diversos modos. Estenderam-na a todo o Pentateuco: outras teorias lhe foram acrescentadas ou substituídas, dando um panorama complexo de sentenças oscilantes ou mesmo contraditórias umas às outras, que não vem ao caso expor aqui.
Passaremos imediatamente à teoria que representa o ponto alto da crítica, alcançando grande voga entre os estudiosos: é a teoria do professor alemão Júlio Wellhausen (1844-1918), a qual se aplica não somente ao Pentateuco, mas também ao livro de Josué (conjunto este que Wellhausen denominava «Hexateuco»), Eis as grandes linhas do sistema:
Wellhausen partia de um pressuposto não propriamente exegético nem literário, mas filosófico hegeliano: admitia, sim, que todos os povos passam por um evolucionismo cultural e religioso, percorrendo sucessivamente fases de vida nômade (errante), agrícola (estável, sedentária) e comerciante, para chegar finalmente ao artesanato. Paralelamente, a mentalidade religiosa se desenvolveria a partir de formas e práticas grosseiras (animismo, fetichismo, politeísmo…), atingindo por último o monoteísmo (culto de um só Deus pessoal e transcendente). O povo de Israel não terá escapado a essa trajetória de evolução, conforme Wellhausen; foi, portanto, em função deste pressuposto que o crítico alemão arquitetou a sua teoria sobre a origem da Lei de Israel, manifestando, aliás, profundo ceticismo no tocante ao valor histórico dos livros bíblicos. É muito revolucionária a ideia que do antigo povo hebreu propôs Wellhausen; com efeito, os iniciadores do monoteísmo em Israel teriam sido os profetas (séc. IX/VIII a. C.); os escritos destes constituiriam as partes mais antigas da Bíblia. Quanto ao Pentateuco, ter-se-ia originado por fusão de quatro documentos oriundos em épocas diversas, não, porém, antes do séc. IX (Moisés viveu no séc. XIII a. C.). A fim de granjear autoridade para a obra resultante da fusão, a classe dominante em Israel a terá atribuído a Moisés, figura semilendária, de cuja história pouco ou nada se sabe. As quatro fontes utilizadas seriam:
1) O Código Javista (J), que teve origem no reino de Judá, meridional, por volta de 850 a. C.; começa pela segunda descrição da criação do mundo em Gên 2,4b. compreendendo a história dos Patriarcas, a vida de Moisés e ao menos as primeiras incursões de Israel na terra de Canaã. Usa desde o início das suas narrativas o nome de Javé, com o qual Deus se revelou a Moisés.
2) O Código Eloísta (E), que se originou pouco depois (antes de 722, queda de Samaria) no reino da Samaria (setentrional). Nesse documento, que começa com a história de Abraão, Deus aparece frequentemente a falar em sonhos e a manifestar diretamente seus desígnios aos homens; os Patriarcas são politeístas. Usa predominantemente o nome Eloim, ficando Javé reservado a secções posteriores a Êx 3 (revelação do nome Javé no Sinai).
Os documentos J e E terão sido fundidos, e de algum modo retocados em um único «Jeovista» (JE) por volta de 650.
3) O Deuteronômio (D) se deveria a um grupo de sacerdotes de Jerusalém, que desejavam fazer do templo de Jerusalém o santuário Único, nacional; em consequência, terão redigido esse código como se fosse escrito por Moisés, e em 622 o terão apresentado ao público qual obra recém-descoberta no templo após um período de esquecimento. Foi fundido com JE, servindo de norma para a revisão dos escritos sagrados anteriores.
4) O Código Sacerdotal (P, do alemão «Priesterkodex») seria a compilação de algumas séries de narrativas e leis, de caráter ritual. A compilação se terá feito por etapas no fim do exílio (séc. VI a. C.) ou pouco depois (séc. V), sob a influência do profeta Ezequiel e da sue escola de sacerdotes. Foi promulgada por Esdras em meados do séc. V aproximadamente. O Código P foi fundido com a obra JED, fornecendo o quadro ou o arcabouço para as demais narrativas e leis; assim se constituiu a chamada «Lei de Moisés» ou a Torah dos judeus, que, a partir de 330 a. C. (época de Alexandre Magno), não terá sofrido ulteriores acréscimos.
Eis, rapidamente expostas, as ideias de Wellhausen.
No mundo dos exegetas encontraram franco apoio da parte de uns, como também decidida oposição da parte de outros. Durante decênios, não há dúvida, exerceram considerável influência sobre os estudos e as publicações Bíblicas em geral. À medida, porém, que se foram avolumando os resultados de pesquisas literárias, arqueológicas, historiográficas, foram-se evidenciando também as falhas da teoria wellhauseniana; esta apareceu como sistema demasiado esquemático e rígido, sugerido por ideias preconcebidas mais do que pelo exame da realidade histórica; os discípulos de Wellhausen dissecaram os próprios documentos-fontes, tentando, segundo critérios mais ou menos arbitrários, distinguir «fontes de fontes»; imaginaram uma nova cronologia absoluta e relativa, de modo que hoje em dia estão longe da unanimidade nesse setor.
Que dizer, em grandes linhas, da teoria de Wellhausen? Em resumo, duas são as principais deficiências do sistema.
1) É inconsistente o pressuposto de que a religião de Israel tenha passado paulatinamente das formas mais grosseiras até a mais pura ou o monoteísmo. De modo geral, as pesquisas de história das religiões deram a ver que o animismo, o fetichismo e semelhantes crenças não são expressões primitivas e originárias da religiosidade, mas constituem modalidades posteriores e decadentes. Em particular no povo de Israel, não ha vestígio de politeísmo ou idolatria, de tal modo que o monoteísmo parece realmente ter sido não a forma tardia, mas a expressão primária e genuína da religiosidade em Israel.
Os argumentos que corroboram esta conclusão já foram apresentados em «P. R.» 2/1957, qu. 6; aqui lembramos apenas que, desde os primeiros capítulos da Bíblia, os autores israelitas se referem a um só Deus: assim na descrição da criação do mundo um só Senhor tira do nada todas as coisas (Gên 1,1-2,4); é Ele mesmo quem se manifesta aos primeiros homens (Gên 2,25-4,26), permite o dilúvio e contrai aliança com Noé (Gên 6-9); dispersa os homens soberbos (Gên 11,1-9) e finalmente se revela a Abraão e ao povo de Israel (Gên 121-3). Donde se vê que os escritores de Israel tinham consciência de que a religião primitiva era monoteísta e de que eles eram, por vocação divina dirigida a Abraão (séc. XVIII), os herdeiros e continuadores desse monoteísmo primordial.
Isto explica, já não haja em nossos dias estudioso sincero que atribua aos profetas a invenção do monoteísmo israelita.
2) As descobertas arqueológicas e literárias foram mostrando com evidência crescente que as leis e narrativas contidas no Pentateuco eram muito mais antigas do que julgava Wellhausen; em consequência, percebeu-se que as datas de origem dos documentos-fontes J e E (séc. IX/VIII a. C.) assinaladas pelo crítico alemão não poderiam ser sustentadas. Com efeito, as pesquisas contemporâneas têm manifestado aos estudiosos o ambiente do Próximo Oriente com seus códigos legislativos e seus monumentos literários; um confronto desses documentos com a Lei de Israel permite estabelecer muitos pontos de contato entre o Pentateuco e a cultura oriental (egípcia, assíria, babilônia, fenícia…) do segundo milênio a. C., de modo que se deve admitir para os dados (leis e narrativas) do Pentateuco origem muito anterior ao movimento profético (séc. IX a. C.). Wellhausen, ao propor suas datas, não tinha conhecimento desses resultados da ciência arqueológica contemporânea.
«Os estudos de arqueologia e de história antiga evidenciaram de modo especial que Israel não é um povo isolado na história da civilização… A descoberta de códigos orientais, dos quais alguns são de vários séculos anteriores a Moisés (nos últimos anos, além do código de Hamurabi, foram encontrados os códigos mais antigos dos reis Lipitshtar e Bilalama), mostrou que o corpo de leis de Moisés, atribuído por Wellhausen à época do exílio (séc. VI a. C.). contém elementos arcaicos; ele não é, de modo algum, anacrônico na época em que a Bíblia o coloca» (G. Rinaldi. Pentateuco, em «Enciclopédia Cattolica» IX 1151).
Feitas estas observações restritivas à teoria de Wellhausen e às que dela dependem, fica aberta a questão: que se deverá então dizer, em termos positivos, a respeito da origem do Pentateuco? Excluir-se-á a hipótese de fontes e da colaboração de vários redatores? É o que passamos a analisar.
Princípios de solução
Não resta dúvida de que a origem do texto do Pentateuco, como ele hoje existe, corresponde a um processo histórico lento e complexo, do qual não se podem recompor com toda a exatidão as fases sucessivas. A sadia crítica moderna se contenta com a indicação de pontos adquiridos no estudo, pontos que deverão merecer atenção em qualquer tentativa de reconstituição completa, da história. Tais pontos :reduzem-se aos três seguintes:
1) Na configuração do texto atual do Pentateuco, não se podem negar o uso de fontes e a colaboração de mãos diversas.
Esta afirmação se baseia em indícios vários:
a) falta, por vezes, continuidade ou nexo lógico entre certas secções do Pentateuco — o que faz crer hajam sido redigidas independentemente umas das outras e posteriormente justapostas.
Haja vista, por exemplo, a secção Gên 1,1-4a: narra a criação do mundo até a etapa final. Pois bem; logo em 2,4b o leitor é reconduzido à fase da terra deserta e destituída de vegetação; o escritor sagrado põe-se então a narrar de novo o aparecimento do homem, dos vegetais e dos animais…
Em Gên 4,26, lê-se que Adão teve um filho, Sete, e que os homens começaram então a invocar o nome de Javé. Ora pouco adiante, em 5,1, recomeça a história da descendência de Adão com o nascimento de Sete, não havendo menção do nome de Javé até 5,29. Levem-se em conta outrossim Gên 7,7 e 7,10; Ex 19,9-25 e 20,18-21.
Às vezes, a continuidade dar narrativa é interrompida por uma secção, que parece inserida: assim o texto de Êx 2,23a se prossegue logicamente em 4,19. As admoestações de Moisés a Datã e Abirã, em Núm 16,12-15, se prosseguem não em 16,16-24 (revolta de Coré), mas em 16,25-35 (punição dos dois mencionados revoltosos).
b) Registram-se secções em duplicata.
Tenham-se em vista, por exemplo, as duas descrições da criação (Gên 1,1-2,4a e 2,4b-25); a vocação de Moisés é narrada duas vezes (cf. Êx 3 e 6). O Decálogo é referido pela primeira vez em Êx 20, pela segunda vez em Dt 5. O catálogo das principais festas religiosas – aparece em cinco passagens: Êx 23,14-17; 34,8-23; Dt 16,1-16; Lev 23,1-44; Núm 28s. A respeito dos dízimos, a legislação ocorre em quatro trechos distintos: Lev 27,30-33; Núm 28,21-24; Dt 14,22-29 e 26,12-15… Às vezes o enunciado da mesma lei é assaz uniforme nas diversas secções em que ocorre; outras vezes, porém, parece supor diferentes situações econômicas, sociais e religiosas; assim a lei do ano sabático em Êx 23,10s visa apenas os produtos agrícolas, ao passo que em Dt 15,1-15 tem em mira as dividas pessoais.
c) O vocabulário e o estilo do Pentateuco oscilam, sugerindo autores diversos.
O uso das.designações de Deus. de acordo com o texto hebraico, do Pentateuco, se configura do seguinte modo:
Gen | Ex | Lev | Num | Dt | Total | |
Javé | 145 | 393 | 310 | 387 | 547 | 1782 |
Eloim | 165 | 56 | 10 | 10 | 241 | |
Javé-Eloim | 20 | 1 | 21 |
Verdade é que o critério dos nomes divinos não merece plena confiança, pois os manuscritos por vezes discordam entre si na transmissão do texto sagrado.
Note-se que o sogro de Moisés é chamado Raguel em Êx 2,18, Jetro em Êx 31; 4, 19, e Hobab em Jz 1.-16; 4,11. A montanha onde Deus se revelou a Moisés, é o Sinai (em Êx 3,12;19,l-3) também dito Horeb (em Êx 3,1; 17,6; 33,6 e no Deuteronômio).
No Deuteronômio ocorrem expressões características, como «Javé teu Eloim», «vosso Eloim», «aderir a Deus», «fazer o que é bom aos olhos de Javé», «exterminar o mal do meio de…», «observar os mandamentos». O estilo é original, solene, moroso e amplo.
Diferentes mentalidades se refletem nas páginas do Pentateuco. Com efeito, uma série de textos revela um modo de pensar muito amigo dos esquemas, dos números, das datas, das genealogias, usando de formas de estribilho (cf. Gên 1,1-2,4a; 5,1-32); esse modo de pensar, também muito afeiçoado à Lei e aos ritos, é dito «sacerdotal»; os textos que dele dependem são agrupados numa fonte denominada «Código Sacerdotal» (Priesterkodex, conforme Wellhausen).
Ao lado dessa mentalidade, reflete-se no Pentateuco um modo de pensar muito mais espontâneo e vivaz, que tende a fugir dos esquemas e da monotonia; concebe Deus em termos figurados, à semelhança de um homem (antropomorfismos); não costuma enunciar as verdades por meio de fórmulas abstratas, filosóficas, mas antes por meio de diálogos movimentados. Além disto, revela gosto particular pelas explicações etimológicas de caráter popular, interpretando, por exemplo, os nomes de Eva (Gên 3,20), Caim (Gên 4,1), Noé (Gên 5,29), Ismael (Gên 16,1), Isaque (Gên 18,12-15), Amon e Moab (Gên 19 37s), Jacó, Esaú e Edom (Gên 25,25s), Babel (Gên 25,25s), Babel (Gên 119), Segor (Gên 19,22), Bersabéia (Gên 26,33), Betei (Gên 28,19). Tal é a mentalidade dita «javista», porque está associada aos textos em que predomina o nome «Javé».
Também se assinala a mentalidade eloísta (ligada ao uso do nome «Eloim»), caracterizada por conceitos mais espirituais e menos antropomórficos a respeito de Deus; também marcada por especial apreço à moral e por estima dos sonhos como canais de comunicação de Deus aos homens.
d) Podem-se apontar no Pentateuco passagens que, supondo época posterior a Moisés, devem ser atribuídas a redatores subsequentes.
Tais seriam: o estatuto do rei (Dt 17,14-20; cf. 1 Sam 10,25); a tabela dos reis de Edom (Gên 36,31-39; cf. v. 31); preceitos fora de propósito nos tempos de Moisés, como a lei do siclo do santuário (= templo de Jerusalém, construído no período dos reis), em Êx 30,24; glossas explicativas, como Êx 16,35s…
A conclusão de que o Pentateuco teve suas fontes literárias e sofreu acréscimos posteriores torna-se destarte assaz evidente ao estudioso. Para o exegeta católico, é corroborada pelo testemunho da Pontifícia Comissão Bíblica, a qual em 1948 assim se pronunciava:
«Quanto à composição do Pentateuco… em junho de 1906 já a Pontifícia Comissão Bíblica admitia se dissesse que Moisés, ao compor a sua obra, se tenha servido de documentos escritos ou de tradições orais e admitia outrossim modificações e adições posteriores a Moisés.
Hoje ninguém põe mais em dúvida a existência dessas fontes ou recusa admitir um aumento progressivo das leis mosaicas devido às circunstâncias sociais e religiosas de épocas posteriores, aumento progressivo que se manifesta também nas narrativas históricas. No entanto, há presentemente, mesmo entre os exegetas não católicos, as mais diversas opiniões sobre a natureza, o número, a nomenclatura de tais documentos e sua data. Nem faltam autores que, em vários países, com argumentos puramente críticos ou históricos e sem intenção apologética, rejeitam decididamente as teorias até agora mais em voga e procuram explicar as particularidades de redação do Pentateuco não pela diversidade dos supostos documentos, mas pela psicologia e pelas características, melhor conhecidas hoje, do pensamento e da expressão dos antigos orientais, ou pela diversidade do gênero literário exigido pelas várias matérias. Convidamos por isto os sábios católicos a estudar estes problemas sem preconceitos, à luz da crítica verdadeira e dos resultados obtidos pelas outras ciências relacionadas. »Um estudo assim feito determinará por certo a grande e profunda influência de Moisés como autor e como legislador» (Carta ao Cardeal Suhard, de Paris, aos 16 de janeiro de 1948).
Uma vez estabelecido o uso de fontes na redação do Pentateuco, põe-se ulterior questão: quais seriam essas fontes?
2) As fontes do Pentateuco são tradições assaz antigas do povo de Israel, as quais foram sendo reunidas em «famílias de tradições», em parte orais, em parte escritas, e não necessariamente em códigos ou blocos literários escritos.
Esta proposição se apoia na realidade da vida do povo israelita antigo, que passamos a expor mais minuciosamente:
Supõe-se que, junto aos grandes santuários da Terra Santa, se foram formando, desde remota época, narrativas de índole histórica ou de índole legislativa… Eram recitadas perante os peregrinos, servindo-lhes de instrução e motivo de oração; visavam dar resposta às questões fundamentais de toda criatura humana e, em particular, do povo de Israel (Donde vimos? Para onde vamos? Que fazemos na terra?). — Tais tradições, das quais uma ou outra terá sido esporàdicamente redigida por escrito, foram sendo agrupadas em «ciclos» ou «famílias», sob a influência de algum personagem respeitável….. Os critérios de agrupamento eram múltiplos:
Podia ser um determinado vocábulo ou um esquema de redação. Entre esses vocábulos-chaves, tornou-se muito importante, pôr exemplo, a palavra toledoth (= gerações ou história de…); nota-se, com efeito, que o livro do Gênesis é percorrido por nove toledoth, ou nove blocos literários, dos quais oito referem os nomes e alguns dos feitos dos descendentes de determinado personagem: assim há os toledoth (gerações, livro da família) de Adão (Gèn 5,1), Noé (6,9), Sem (11,10), Terá (11,27). Ismãel (25,12), Isaque (25,19), Esaú (36,1). Jacó (37,2); distingue-se mais um toledoth no Gênesis, que é a peça inicial ou 1,1-2,4a, «história da formação do céu e da terra». No livro dos Números (3,1-4) leem-se outrossim os toledoth de Aarão e Moisés. — Destarte a história religiosa da humanidade era descrita mediante a apresentação de séries de gerações.
O critério de agrupamento das tradições podia ser também a trama da vida de certo personagem. Assim distingue-se o «ciclo da vida de Abraão»: as peregrinações deste Patriarca (Gên 12), a separação de Abraão e Lote (Gên 13), a aliança com Deus (Gên 15), o nascimento de Israel (Gên 16), a intercessão de Abraão em favor de Sodoma e Gomorra associada à promessa do nascimento de Isaque (Gên 18s), o nascimento de Isaque (Gên 21,1-7), o sacrifício de Abraão (Gên 21,14-18), a solicitude do velho pai em proporcionar digno casamento a seu filho (Gên 24).
Mais ainda: podiam-se agrupar as tradições de acordo com os respectivos temas havendo então em cada família de tradições um tema central a dominar a série de episódios. É o que se dá, por .exemplo, com o tema do «pecado que se vai mais e mais propagando»: esta ideia confere unidade aos episódios de Gên 2,4b-4,24 (criação, pecado original e pecado de Caim), 6-9 (o pecado provocador do dilúvio), 9,18-29 (o pecado até mesmo entre os filhos do justo Noé), 11,1-9 (a soberba è a torre de Babel). Esses quadros constituem o fundo negro que justifica e explica a vocação de Abraão por parte do Senhor.
Os críticos contemporâneos costumam admitir que os agrupamentos de tradições, por suas notas características, vêm a coincidir com o que Wellhausen denominou as fontes J, E, P e D. Renunciam geralmente a assinalar datas precisas para a formação das famílias de tradições; na verdade, estas se devem ter constituído aos poucos, de acordo com as necessidades variadas da instrução e da devoção dos fiéis.
Pergunta-se agora: qual o papel de Moisés na constituição das famílias de tradições e consequentemente na formação do Pentateuco?
3) Na redação do Pentateuco, Moisés terá desenvolvido um tríplice papel:
a) Em relação a certos episódios, Moisés terá sido autor e escritor direto.
b) A outros episódios Moisés não terá dado a forma escrita, mas, sim, o caráter oficial, incutindo-os e promulgando-os com a sua autoridade junto ao povo; terão sido redigidos por israelitas anteriores ou posteriores a Moisés.
c) Além disto, Moisés criou em Israel um espírito, uma – mentalidade — a mentalidade teocrática própria do povo eleito de Deus; esse espírito uno e bem marcado inspiraria as novas leis que se tornassem necessárias em Israel para atender a fases posteriores da vida do povo de Deus.
Em consequência, pode-se dizer que Moisés é «o autor da substância da Lei ou do Pentateuco»: o que aí não está diretamente marcado pelo estilo de Moisés, está certamente marcado pela mentalidade de Moisés. O termo «autor do Pentateuco» toma assim o sentido mais amplo de «responsável pelo Pentateuco». Note-se que a Pontifícia Comissão Bíblica, no trecho atrás (pág. 513) citado, fala de profunda influência de Moisés no texto do Pentateuco, sem precisar ulteriormente em que tenha consistido essa influência do Legislador.
Descarte vê-se que a falha dos críticos liberais não consiste propriamente em admitir fontes do Pentateuco (a existência destas é plenamente compatível com a inspiração Bíblica, como ficou demonstrado em «P. R.» 26/1960, qu. 5), mas em querer distanciar de Moisés essas fontes, de modo a negar a influência do chefe de Israel sobre a Lei e, por conseguinte, a antiguidade desta.
Para ilustrar como Moisés se relaciona com a Lei de Israel, os exegetas recorrem ao fato seguinte: muitas nações contemporâneas se regem pelo «Código de leis de Napoleão»; sabe-se, porém, que ao corpo legislativo emanado diretamente de Napoleão cada país foi acrescentando determinações novas a fim de atualizar e explicitar a legislação de Napoleão; essas leis novas, embora não sejam diretamente da autoria de Napoleão, exprimem, não obstante, o espírito y e os princípios de Napoleão; por isto continua-se a dizer que o Código legislativo de Napoleão está em vigor em tais- nações. — Algo de semelhante se terá dado com o núcleo de normas diretamente formuladas por Moisés e as que legisladores posteriores lhes acrescentaram; estas não quebraram a unidade do conjunto, pois traduziam . de modo genuíno a mente de Moisés; daí poder atribuir-se simples- mente a Lei ou o Pentateuco a Moisés.
Também lembram os estudiosos que Tomismo não designa apenas ; o sistema doutrinário que S. Tomaz consignou em seus escritos; abrange outrossim o desdobramento desse sistema tal como ele se deu por obrai dos genuínos discípulos de São Tomás.
Eis as principais conclusões a que chegou a crítica sadia em nossos tempos na elucubração das origens do Pentateuco.
Proposições mais minuciosas seriam demasiado conjeturais; abstemo-nos portanto de as formular aqui. Pode-se supor que ulteriores estudos projetem mais luz ainda sobre o assunto, sem, porém, derrogar a quanto acaba de ser exposto.