«Há duas passagens da história sagrada em que Deus pune os homens com a morte, sem que para isto pareça haver culpa proporcional: 1 Sam 6,19 (o episódio dos habitantes de Betsamés) e 2 Sam 6,6s (o episódio de Oza). Como se há de entender que o Senhor tenha sido tão cruel? »
Analisaremos separadamente cada qual dos trechos referidos.
1. Os habitantes de Betsamés (1 Sam 6,19)
O trecho faz-nos retroceder aos tempos de Samuel (cerca de 1050 a.C.).Refere-se à volta da arca do Senhor para o seu santuário em Israel, depois que, raptada pelos filisteus, estivera em terra pagã. Numa das etapas do itinerário, a arca pousou em Betsamés, aldeia israelita; foi então que, conforme o texto hebraico atual e a tradução latina da Vulgata, se deu o seguinte episódio:
«O Senhor prostrou os habitantes de Betsamés por terem olhado para a arca; prostrou setenta homens dentre o povo e cinquenta mil da multidão» <1 Sam 6,19>.
O texto oferece ao leitor dificuldades de interpretação tanto de índole literária como de caráter teológico. Os exegetas lhe têm dado explicações diversas, que passamos a considerar:
a) Olhares indiscretos
Certos comentadores julgam que os habitantes de Betsamés lançaram para a arca do Senhor olhares indiscretos, curiosos ou irreverentes. Ora a falta de respeito para com o Divino foi sempre considerada grave culpa no Antigo Testamento, como se depreende de várias prescrições da Lei de Moisés.
Assim, por exemplo, rezava uma cláusula referente aos caatitas ou ministros subalternos do culto:
«A fim de que (os caatitas) vivam e não morram quando se aproximarem dos objetos sagrados, Aarão e seus filhos assinalarão a cada qual o seu ofício… para que não entrem, por um só instante que seja, para ver os objetos sagrados e, em consequência, morram» (Núm 4,19s).
Os levitas mesmos, homens exclusivamente dedicados ao santuário, não podiam, sem perigo de morte, aproximarem-se da arca do Senhor antes que os sacerdotes a tivessem recoberto (cf. Núm 4,5-15).
De modo geral, a nenhum profano era lícito, sem arriscar a vida, entrar em contato com o Santo, ainda que fosse por mero olhar (cf. Êx 19,21); por isto, quando a glória do Senhor se tornou manifesta sobre o monte Sinai, Moisés cerrou o acesso à montanha da aparição (cf. Êx 19,23).
Sabe-se, aliás, que os antigos, mesmo pagãos, julgavam que o sagrado é intangível, invisível, inacessível ao homem não iniciado; todos os objetos religiosos, principalmente os que serviam ao culto divino, eram tidos como portadores da presença de Deus, misteriosa e temível. Entre os judeus, a irreverência para com as leis do culto era punida com especial rigor, dado o perigo que ameaçava o povo, de adotar usos e crenças do paganismo.
Que dizer de tais considerações?
Não há dúvida, o conhecimento desses particulares contribui para esclarecer a passagem analisada. Contudo pergunta-se: podia realmente haver culpa grave nos habitantes de Betsamés por terem considerado a arca que se oferecia aos olhares de todos? O fato de haverem previamente oferecido sacrifícios ao Senhor (como se lê pouco antes, em 1 Sam 6,151 não atesta o seu respeito religioso?
b) Outras faltas
Considerando tais dificuldades, há quem julgue que os homens de Betsamés foram punidos por anteriores pecados do povo ainda não expiados.
Flávio José, historiador judaico do fim do séc. I d.C., supõe que, simultaneamente com o olhar, alguns israelitas hajam indevidamente tocado a arca (cf. Ant. 6,1,4).
Nenhuma dessas explicações satisfaz plenamente.
c) Elucidação: problema mal formulado
Procurando entender melhor a passagem, bons exegetas modernos observam, em primeiro lugar, que o texto hebraico dos livros de Samuel chegou até nós em estado de conservação deficiente; em particular, a frase de 1 Sam 6,19 parece ter sido maltratada pelos copistas, pois refere duas enumerações (setenta homens e cinquenta mil homens) das quais a segunda é evidentemente errônea; a quantia de cinquenta mil ultrapassaria o número de habitantes de toda a região de Betsamés; além disto, não é mencionada por certos manuscritos hebraicos nem por Flávio José; terá sido interpolada, como julgam abalizados comentadores. Considerando isto, os críticos bíblicos dão preferência à forma do texto de 1 Sam 6,19 apresentada pela tradução grega dita «dos LXX Intérpretes»:
«Os filhos de Jeconias, dentre todos os moradores de Betsamés, foram os únicos que não se alegraram ao ver a arca do Senhor. O Senhor então prostrou setenta homens dentre eles».
Na base deste texto, o problema já se restringe muito.
E como o elucidam então os comentadores?
Em Betsamés, dizem, devia haver uma família dita «dos filhos de Jeconias» (que, de resto, não nos são conhecidos), os quais terão tomado uma atitude de indiferença, contrastando com o entusiasmo sagrado do povo. O escândalo então se produziu na multidão e terá provocado a punição de setenta membros de tal família!
Mas, mesmo assim, não terá sido duro demais tal castigo?
Levem-se em conta dois elementos importantes na espiritualidade do Antigo Testamento:
a’) O povo de Israel era «gente de dura cerviz», como diz frequentemente o texto sagrado, significando a rudez de mentalidade e de costumes dos antigos judeus; geralmente só se rendiam a demonstrações fortes. Não obstante, eram portadores da verdadeira fé para o mundo, ou seja, portadores de tesouro preciosíssimo e muito delicado… Em consequência, para preservar a verdadeira fé e excitar a consciência do povo de dura cerviz, podiam-se tornar necessárias severas intervenções de Deus (intervenções que, se não fossem realmente retumbantes ou impressionantes, nenhum efeito obteriam na mentalidade daqueles homens). Ora julga-se que foi justamente uma dessas manifestações que se deu em Betsamés em vista dos interesses religiosos de Israel (o episódio ocorreu, sem dúvida, numa fase muito remota da história, quando o povo ainda era realmente muito rude). E — note-se bem — o texto sagrado nos diz que a advertência produziu seus efeitos, pois refere (6,20) que os habitantes de Betsamés reconheceram no ocorrido um sinal, não da crueldade, mas da santidade de Deus! … Em geral, os israelitas temiam, mas não criticavam, os castigos infligidos pelo Senhor.
b’) Também não se poderia deixar de lembrar que tão rude castigo corpóreo não significa condenação dos respectivos pecadores ao inferno. Deus terá permitido a violenta prostração para impressionar e exortar o povo rude, dando, porém, a cada qual dos réus a graça para se arrepender e salvar a sua alma. Não nos é possível nem licito definir a sorte eterna de pessoa alguma; só Deus vê o íntimo das consciências. Apenas podemos ter certeza de que o Senhor, que é a Justiça mesma, não comete as injustiças que nós obviamente sabemos repudiar e não ousamos cometer (pode-se até dizer que é mais lógico não crer em Deus do que crer num Deus que seja menos justo do que os homens).
Trecho que, por análogos motivos, chama a atenção é o de 2 Sam 6,6s (paralelo a 1 Crôn 13,7-10).
2. O episódio de Oza (2 Sam 6,6s)
Qual o conteúdo de tal passagem?
O autor sagrado continua a descrever o itinerário da arca do Senhor em Israel, itinerário interrompido pela permanência da mesma em Cariatiarim ou Baalá, pouco após o episódio de Betsamés atrás referido (cf. 1 Sam 7,1). Tendo estado setenta anos em Cariatiarim, o santuário foi transferido para Jerusalém, onde Davi erguera a capital do seu reino. Aconteceu, porém, que durante o trajeto certo varão chamado Oza percebeu que a arca, posta sobre um carro de bois, corria o risco de cair por terra; tocou-a então com as mãos a fim de ampará-la; logo, porém, o Senhor o fulminou com a morte.
Tal punição bem pode desnortear a boa mente do leitor… Como interpretá-la?
a) Excluindo…
Antes do mais, rejeitar-se-á, como fora de propósito, a sentença que o exegeta moderno Procksch propõe: «A arca aparece como que carregada de eletricidade sagrada, da qual uma centelha fere o homem profano como raios (artigo publicado cm «Kittel, Theologisches Woerterbuch zum Neuen Testamcnt I. Stuttgart, pág. 92). Outros autores (Fritz, Kahn, Denis Papin), cedendo à imaginação, explicam que os sacerdotes de Israel, conhecedores dos segredos da eletricidade, haviam feito da arca «um autêntico condensador elétrico, que se carregava mediante eletricidade atmosférica; e isto, a fim de explorar a religiosidade do povo (curiosa exposição da tese encontra-se em «Anhembi- XVIII. 1955, pág. 171-173). Esta sentença, dado o seu caráter gratuito, é irrisória, carece de fundamento tanto no texto sagrado como na própria história da civilização humana que assinala a utilização das forças elétricas a época relativamente recente). Entre outras coisas, note-se que a causa da morte de Oza não parece proceder da arca mesma; ao se ler a narrativa, dir-se-ia que houve uma intervenção de Deus entre o toque e a fulminação.
Mas porque terá o Senhor procedido de maneira tão prepotente?
b) O sentido do episódio.
A ação de Oza, considerada em si, representava uma falta contra as prescrições de culto israelita. Com efeito, não era permitido aos hebreus violar os objetos sagrados com olhares indiscretos (como já atrás dissemos); muito menos lhes era lícito tocá-los. Tão rigorosa era mesmo esta última proibição que os próprios levitas, embora fossem encarregados de transportar os objetos do culto (turibulos, pinças, bacias, etc), deviam fazê-lo sem os atingir com as mãos (cf. Núm 4,15); só podiam carregar a arca do Senhor servindo-se de barras, e barras que jamais deveriam ser separadas do móvel, a fim de não se dar ocasião a que alguém o ousasse tocar diretamente (cf. Êx 25,15).
A pena de morte infligida a Oza por haver transgredido a proibição poderá parecer excessivamente severa. O episódio, porém, há de ser estimado à luz da concepção particularmente rigorista com que em Israel era tachada a violação das coisas santas (tenha-se em vista o que há pouco dizíamos sobre o assunto); ademais é preciso não esquecer que no Antigo Testamento nos defrontamos com um povo que muitas vezes só se rendia às impressões fortes. Contudo parece que ainda fica
c) Uma dúvida.
Terá tido Oza ao menos a consciência de que praticava algo de condenável? Não parece que, ao contrário, era boa a sua intenção, já que desejava preservar de incidente a arca do Senhor?
O texto bíblico não é muito claro neste particular. O original hebraico diz que Oza foi punido por sua «falta» (= al-hassal, também «erro, negligência»). Como quer que seja, os antigos israelitas não distinguiam muito exatamente entre pecado formal, voluntário, consciente, e pecado material, inconsciente, involuntário; consideravam não raro apenas a ação externa, sem levar em conta a intenção de quem agia.
Aliás, nem a teologia, muito apurada, dos rabinos contemporâneos de Cristo fazia distinção entre pecado formal e pecado meramente material, inconsciente. Assim é que no Antigo Testamento a longa seção de Lev 4,1-5,6 trata de faltas cometidas por ignorância; prescreve, não obstante, sacrifícios expiatórios para tais ações. Conforme 1 Sam 14,2445, Jônatas se viu ameaçado de sofrer a morte por ter violado um voto que Saul, seu pai, fizera em nome de todo o exército, voto, porém, de que Jônatas não tinha conhecimento; salvou-o o bom senso do povo, que intercedeu pelo réu inconsciente. A viúva de Sarepta, tendo perdido o filho, julgava que isto lhe podia ter acontecido em punição de faltas que ela mesma ignorava (cf. 3 Rs 17,18).
«Levando em conta as ideias professadas no Antigo Testamento, e em toda a literatura judaica, podemos definir o pecado como sendo a transgressão da vontade divina… expressa pela lei; é a violação de um mandamento, quer seja conhecido, quer não, quer seja a transgressão consciente e deliberada, quer não; há falta porque há desordem; é esta uma consequência direta do caráter jurídico da moral judaica. A prova de que essa desordem era injúria feita a Deus é que deveria ser reparada por um sacrifício» (J. Bonsirven, Le Judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ II. Paris 1935, pág. 82).
Importante: o autor julga que a concepção rabínica é a expressão fiel do que se acha nos livros do Antigo Testamento, assim como da mentalidade judaica, que dava valor preponderante às ações exteriores, negligenciando a intenção do agente.
Eis o testemunho de outro abalizado autor:
«Para as gerações antigas, a ofensa contra Javé toma a forma de um ato proibido em sua materialidade mesma. Ainda não se percebe claramente que, para haver falta, é preciso haver responsabilidade pessoal do pecador. Também não se percebe devidamente que as exigências de Javé são conformes à sua Sabedoria tanto quanto ao seu poder» (A. George, Fautes contre Yaweh dans les livres de Samuel, em «Revue biblique» 33 [1946] 182).
Verifica-se, porém, em um ou outro caso, a distinção entre pecado cometido por indústria maliciosa e pecado cometido como que involuntariamente. É o que ocorre ao se tratar de homicídio, em Êx 21, 12-14.
Considerados estes particulares, não causa estranheza que Oza, pelo simples fato de ter cometido um ato em si mau, embora animado por boa intenção, se possa ter tornado merecedor de castigo. Este castigo — frisemo-lo bem — tinha significado primariamente no foro externo, servindo de admoestação para os israelitas contemporâneos de Oza; não é necessário dizer que, em consequência, Oza foi condenado ao inferno ou à reprovação eterna, pois no foro íntimo da consciência Deus terá levado em conta a boa intenção que animava Oza (tenha-se por certo que, se nós, homens, possuímos o senso da justiça, muito mais Deus o possui).
Contudo não faltam exegetas que, em última análise, julgam necessário renunciar ao entendimento pleno do episódio de 2 Sam 6,6s, já que o texto sagrado não fornece indicações suficientes para tal.
3. Conclusão
Os episódios acima analisados não foram consignados nas Escrituras para fazer tropeçar o leitor cristão; tal finalidade seria indigna de Deus. Trazem, antes, um ensinamento religioso: veja-se neles mais um aspecto dos preparativos pelos quais o Senhor quis fazer passar o gênero humano a fim de que nós, cristãos, pudéssemos finalmente compreender a «justiça melhor» do Evangelho (cf. Mt 5,20).
Ao lado dos trechos que manifestam rude mentalidade religiosa em Israel, encontram-se outros que os completam, pois dão a ver que o Senhor Deus, ao mesmo tempo que se revelava como «Deus de Justiça», mostrava também ser o Deus de Bondade e Amor.
Com efeito, o primeiro preceito da Lei de Moisés era o do amor, amor a Deus:
«Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6,5).
O segundo lhe era semelhante:
«Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lev 19,18; cf. 19,8-10).
A estes dois mandamentos se podiam reduzir toda a Lei, todas as admoestações dos Profetas e, em geral, a Escritura do Antigo Testamento, como reconhecia o Doutor da Lei perante Jesus (cf. Mt 22,34-40; Mc 32,28-31; Lc 10,27).
Da sua parte, o Senhor, por meio de Moisés, lembrava que se revelara aos Patriarcas e exercera a sua Providência para com Israel, não cm virtude de algum direito ou merecimento do povo, mas por mero amor:
«O Senhor vosso Deus vos escolheu… dentre todos os povos que estão sobre a face da terra. O Senhor aderiu a vós e vos escolheu, não porque ultrapasseis em número qualquer dos outros povos; sois o mínimo de todos os povos. Mas porque o Senhor vos ama e quis cumprir o juramento que fez a vossos pais» (Dt 7,6s).
«Sabei que não é por causa da vossa justiça que o Senhor vosso Deus vos dá esse belo pais (Canaã) como propriedade; sois um povo de dura cerviz» (Dt 9,6; cf. 4,37).
Voltando-nos agora para os livros de Samuel em particular, donde procedem os episódios aqui analisados, observamos os seguintes traços complementares:
O Senhor que pune, é também Aquele em cuja benevolência o povo deposita profunda confiança, pois é o grande Aliado e Tutor de Israel, principalmente na guerra: 1 Sam 4,5; 2 Sam 5,10; 8,6-14.
Talvez nenhum livro histórico da Sagrada Escritura ponha tanto em realce a piedade pessoal, as íntimas relações dos fiéis com o Senhor, como os livros de Samuel. É o que se verifica na história de Ana, que, devota e confiante, pede um filho (1 Sam 1,11.20.26), na celebração frequente dos sacrifícios populares (1 Sam 2,13.18s), no entusiasmo das «escolas de profetas» (1 Sam 10,5; 19,20), no zelo religioso sincero, embora pouco esclarecido, de Saul (cf. o voto de Saul em 1 Sam 14,24-35; seu desejo de oferecer sacrifícios em 1 Sam 13,9-12; 15, 9.15; outras afirmações em 11,13; 17,37; 28,6); principalmente no amor de Davi, que promove o culto sagrado (1 Sam 26,19s; 2 Sam 6,5.14-16. 22; 12, 13-23; 15, 25.31). Davi sabe que a sua vida é cara a Deus (1 Sam 26,24; 2 Sam 7,18-21); o seu arrependimento, após o pecado, testemunha amor, não temor apenas (2 Sam 12,13; 24,10).
Por fim, embora muito valor se desse ao aspecto exterior da santidade ou da virtude, o autor sagrado inculcava que Deus vê além das aparências: «O homem considera a face; Deus, porém, vê o coração» (1 Sam 16,7).