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O Milagre do Sol de Josué

1.618

A controvérsia que se desenrola em torno do «milagre do sol» de Josué está geralmente fundada em falha interpretação do texto bíblico; essa falha dá origem ao problema, que na verdade carece de fundamento real.

Sendo assim, examinaremos abaixo o texto bíblico como tal e as principais interpretações até hoje propostas; a seguir, deter-nos-emos sobre o seu autêntico significado.

1. O texto bíblico e suas diversas interpretações

1.1. A passagem de que se trata, narra uma campanha vitoriosa dos israelitas sob o comando de Josué na terra de Canaã, referindo, entre outras coisas, uma batalha contra os Amorreus assim concebida:

JOS 10: 7 «Josué subiu de Gâlgala, ele e todos os homens de guerra com ele, todos corajosos combatentes. 8 Então o Senhor falou a Josué: ‘Não os temas, pois os entregarei em tuas mãos, e nenhum deles resistirá diante de ti’. 9 Josué, pois, irrompeu sobre eles repentinamente; durante a noite inteira tinha subido de Gálgala. 10 E o Senhor lançou confusão sobre eles em presença dos israelitas, de modo que Israel lhes infligiu grande derrota perto de Gabaon; perseguiu-os pelo caminho que sobe para Betoron e abateu-os com seus golpes até Azecá e Macedá. 11 Ora, quando fugiam dos Israelitas, na descida de Betoron, o Senhor fez cair do céu sobre eles grandes seixos até Azecá. e morreram. Mais numerosos foram os que pereceram pelos seixos de granizo do que os que morreram pela espada dos filhos de Israel.

12a Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor entregou os amorreus aos filhos de Israel, e falou & vista de Israel:

12b ‘Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, lua, sobre o vale de Ascalon!’ 13a E o sol parou, a lua se manteve imóvel, Até que o povo se tivesse vingado dos seus inimigos!

13b Não se acha Isto escrito no ‘Livro do Justo’? 13c Asstm o sol parou em meio ao céu. e não se apressou por chegar ao ocaso, durante quase um dia Inteira 14 Não houve, nem antes nem depois, dia como aquele, em que o Senhor obedeceu & voz de um homem, pois o Senhor combatia por Israel.

15 E Josué, e todo Israel com ele, voltou ao acampamento em Gálgala».

1.2. São múltiplas as tentativas de explicar o relato acima; limitar-nos-emos aqui a mencionar as principais :

a) Os comentadores antigos e medievais, carecendo de conhecimentos profundos de linguística oriental, tomavam o texto ao pé da letra, no sentido que lhes parecia óbvio: já que, conforme a astronomia da época, o sol girava em torno da terra, julgavam que Josué fez parar o sol, a fim de alongar o dia e poder consumar a vitória sobre os amorreus.

Esta interpretação devia naturalmente ser posta em xeque no séc. XVII: Galileu então chegava à conclusão de que não é o sol que se move, mas é a terra que gira em torno do sol. Os teólogos, a princípio, se inquietaram com esta afirmação, julgando que contradizia a Bíblia Sagrada (sobre o caso de Galileu, veja-se «P.R.» 4/1958, qu. 12).

Aos poucos, porém, foram mudando de parecer, reconhecendo que a Sagrada Escritura não quer ensinar ciências profanas; perceberam que as concepções de astronomia (sistema geocêntrico de Ptolomeu), no relato acima, evidentemente não são de fé; o escritor sagrado não as queria inculcar como tais, mas apenas servia-se das opiniões científicas vigentes no seu tempo para afirmar a intervenção do Senhor em favor do seu povo na batalha contra os amorreus. De resto, ainda hoje os nossos sentidos, antes de ser corrigidos pelo raciocínio, não nos levam a afirmar que é o sol que «se levanta» e «se põe»? Usamos dessa linguagem popular, sem que alguém nos acuse de mentira, pois todos sabem que, assim falando, não entendemos ensinar astronomia, mas apenas chamar a atenção para o fato que desejamos narrar. Assim no livro de Josué os exegetas perceberam que o autor sagrado se referiu ao «estacionamento do sol» de acordo com a linguagem pré-científica e familiar de sua gente, porque não tinha a intenção de dissertar sobre astronomia, mas apenas a de aludir a uma circunstância acidental do episódio que ele desejava relatar: a vitória sobre os amorreus.

b) Uma vez reconhecida como errônea a interpretação outrora dada ao texto de Jos 10, ainda ficava aberta a questão: como, pois, entender o episódio? Como explicar o «milagre» à luz da nova astronomia?

Várias foram então as tentativas de explicação apresentadas:

—   não poucos, transpondo a linguagem popular para o campo científico, passaram a crer que não o sol, mas a terra interrompeu o seu movimento: terá ficado estacionária à luz do sol, de modo a ocasionar um dia mais longo para que Josué e seu exército obtivessem a vitória sobre os amorreus!…

—   outros recorreram a interpretações mais sutis, admitindo ou uma chuva de meteoros, que teriam iluminado extraordinariamente o céu após o pôr do sol, ou relâmpagos, que haveriam fulgurado durante a noite, ou ainda um fenômeno de refração dos raios do sol, que, à noite, teria feito o céu aparecer luminoso aos combatentes, como se o sol não tivesse declinado.

1.3. Que dizer de tais interpretações?

Nenhuma delas implica algo de absurdo ou contraditório em si; por isto são aceitáveis. Pergunta-se, porém, se alguma delas corresponde ao que de fato se deu no caso de Josué. Na verdade, levanta-se contra qualquer das explicações que acabamos de propor, uma séria dificuldade: todas supõem um fenômeno extraordinário no curso dos astros, fenômeno que derrogue às leis da natureza. Ora Deus não costuma, sem motivo grave, permitir derrogações às leis que Ele mesmo traçou: o Senhor não faz milagres sem finalidade adequada. No caso de Josué, porém, ter-se-ia dado um portento de proporções astronômicas unicamente para permitir a vitória de um pequeno exército de israelitas sobre outro pequeno exército de Amorreus. Isto parece pouco digno da sabedoria de Deus.

Em consequência, os melhores exegetas propõem outra via de solução, que passamos a expor.

2. O autêntico sentido do episódio

Em vez de admitir precipitadamente um milagre qualquer no texto de Jos 10, os comentadores modernos empreendem, antes do mais, um estudo exato do texto sagrado, do ponto de vista linguístico e literário, a fim de poder perceber com precisão o que o autor bíblico terá intencionado.

Seguindo, pois, tal método, eis as conclusões a que chegaram os estudiosos.

2.1. Quem lê atentamente o texto de Jos 10,7-15, é levado a concluir que há aí duas narrativas paralelas provenientes de duas diversas fontes: uma em prosa, devida ao autor mesmo do livro, que abrange os v. 7-11; e outra, poética, citação transcrita de outro livro (12-13b) e ornada de breve comentário (13c-14). O versículo 15 é a conclusão comum às duas narrativas.

De fato, o v. 11 refere ao leitor já o fim da batalha com a vitória de Josué, o qual perseguiu os inimigos e os exterminou em grande multidão; Israel foi nesta campanha coadjuvado por violenta tempestade de granizo que «o Senhor desencadeou» (essa expressão parece insinuar um fenômeno imprevisto, uma intervenção extraordinária de Deus). Após o v. 11 não se esperaria mais nenhuma façanha bélica de Josué, pois os inimigos estavam vencidos e prostrados; logicamente seguir-se-ia o v. 15, ou seja, a menção da volta de Josué ao acampamento. — Eis, porém, que entre os v. 11 e 15 se insere um episódio (12-14) que reconduz o leitor às peripécias da batalha em curso e se conclui, como o anterior, com a volta dos israelitas ao acampamento (v. 15).

2.2. Como entender este outro trecho (vv. 12-14)?

A sua posição no contexto e a análise do seu conteúdo indicam que os vv. 12-14 referem um particular da mesma batalha transcrito de outra fonte; são uma citação inserida no nosso capítulo 10.

Analisemos, pois, os vv. 12-14:

– após a fórmula introdutória (v. 12a), seguem-se quatro breves frases, que constituem nitidamente uma estrofe poética (vv. 12b-13a);

– o v. 13b é a indicação da fonte donde foi transcrito o texto poético: como se depreende de 2 Sam l,17s, o «Livro do Justo» era uma coleção de cantos seletos em honra dos Justos ou Heróis de Israel;

– os vv. 13c e 14 constituem um comentário em prosa da segunda parte do texto citado (v. 13a); devem-se ao autor da transcrição. O comentário em 13c diz positivamente que o sol parou; repete o mesmo negativamente: «não se apressou para chegar ao ocaso»; e, por último, acrescenta que essa fixidez do sol durou quase um dia inteiro. O v. 14 remata com o louvor de dia tão estupendo e glorioso: «não houve, nem antes nem depois, dia como aquele» (não é a extraordinária duração, mas o caráter glorioso do dia, que o escritor quer pôr em relevo). Pode-se observar que o comentador sô fala da .Interrupção tio curso do sol, hão da lua. pois, provàvelmente, no canto citado se fazia menção da lua Cinicamente por motivo poética (sabemos que uma das leis da poesia hebraica era o paralelismo, ou seja, a justaposição de membros de frase idênticos ou semelhantes ou antitéticos entre si); na realidade, Josué não se terá dirigido à lua, cuja rotação não o interessava durante o dia em que travava a batalha;

o v. 15, supondo encerrada a luta, menciona a volta de Josué ao acampamento.

Após estas considerações, já não é difícil admitir que os vv. 12-14 se referem à batalha descrita em 7-11, com a particularidade de realçar em estilo lírico o que ela teve de glorioso.

2.3. Ora justamente este trecho poético (e o seu respectivo comentário) é que menciona a extraordinária «interrupção do curso dos astros». Tal fenômeno não é referido no trecho prosaico, o qual nem por isto dá a impressão de estar lacunoso, nem poderia silenciar circunstância tão importante, caso fosse realmente histórica. Sendo assim, tem-se já certo fundamento para perguntar se o estacionamento do sol, de que fala a citação, não é mera figura de poesia, que, transposta em linguagem prosaica, diria o mesmo que a descrição prosaica antecedente.

A esta questão responde-se afirmativamente. Em verdade, na linguagem lírica dos judeus, dizer que o sol parara ou silenciara significava que este astro deixara de dar a luz, fosse por motivo de eclipse, fosse por razão de nuvens ou tempestade; haja vista o texto de Habacuque 3,11, além de documentos babilônicos análogos.

2.4. Se agora nos servimos desta observação para a exegese do milagre de Josué, verificamos que o «parar» do sol no trecho poético de Jos 10,12-14 não significa outra coisa do que a terrível e tenebrosa tempestade (de granizo) de que fala, sem figura literária, o v. 11.

Essa tempestade teria durado quase um dia inteiro, conforme o v. 13c («o sol não se apressou, para chegar ao ocaso:», isto é, não se moveu, ficou parado, «durante quase um dia inteiro»). Tão longa tempestade, que foi o principal instrumento de dispersão e morte dos amorreus, teria sido especialmente permitida por Deus para atender a Josué, que implorara auxílio na batalha. O que houve de maravilhoso e extraordinário neste episódio, não foi a tempestade como tal, mas o modo inesperado e extremamente violento como esta se produziu. Em linguagem técnica dos teólogos, dir-se-ia: houve um milagre «quanto ao modo», não «quanto à substância» do acontecimento.

Note-se que em Eclesiástico 46,4s o dia sem igual de Jos 10,14 é apresentado como equivalente a dois, o que não é senão outra forma de dizer «dia cheio de glória, de feitos maravilhosos».

É esta a interpretação que, sobre as outras, tem a vantagem de levar mais em conta as particularidades literárias do texto sagrado, que, até o nosso século, eram negligenciadas, por não se conhecerem tão bem os documentos e o modo de falar dos antigos povos orientais.

Concluir-se-á, portanto, que a propalada interrupção do curso dos astros, no livro de Josué, não é senão o desencadeamento de violenta e demorada tempestade de granizo, permitida por Deus, a pedido de Josué. Duas narrativas justapostas referem essa tempestade: enquanto a primeira usa de estilo liso, a segunda emprega linguagem poética familiar aos antigos orientais, mais desconhecida aos leitores posteriores, que, por isto, falaram do «milagre do sol detido em seu curso»

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