Eis os textos cujo sentido nos propomos averiguar :
Dan 7,7 «Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha dentes grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente do todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez pontas (ou chifres).
8 Estando eu considerando as pontas ou chifres), eis que entre elas subiu outra ponta (ou chifre) pequena, diante da qual três das pontas primeiras foram arrancadas; e eis que nesta ponta havia olhos, como olhos de homem, e uma boca que falava grandiosamente.
…23 Disse assim (o anjo): ‘O quarto animal será o quarto reino na terra, o qual será diferente de todos os reinos; e devorará toda a terra, e a pisará aos pés, e a fará em pedaços. 24 E, quanto às dez pontas,daquele mesmo reino se levantarão dez reis; e depois deles se levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis. 25 E proferirá palavras contra o Altíssimo, e destruirá os santos do Altíssimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei; e eles serão entregues na sua mão por um tempo, e tempos, e metade de um tempo’» (tradução de Ferreira de Almeida).
Uma regra básica de exegese manda que se procure a interpretação de um texto no respectivo contexto ou nas páginas escritas pelo mesmo autor; é preciso averiguar a mentalidade, as regras de estilo e o vocabulário do escritor para que se perceba o que ele queria dizer e não se lhe atribuam teses estranhas.
Ora é assaz evidente que a visão dos quatro animais, aos quais se sucede o reino messiânico, em Dan 7 é paralela à visão da estátua confeccionada de quatro metais, que também cede ao reino messiânico, em Dan 2: a estrutura e a conclusão das passagens são as mesmas; Dan 7, por conseguinte, deverá ser ilustrado por Dan 2.
Numa primeira aproximação, deve-se dizer que, no estilo profético e apocalíptico, animais (reais ou fantásticos) muitas vezes designam nações; cf. Is 27,1; 51,9; Ez 29, 3; 32, 2 (veja-se também SI 67,31; 74,13). É o que se verifica no livro de Daniel : este autor quer designar os quatro grandes reinos que sucessivamente entraram em relações com o povo de Israel antes da vinda do Messias.
O primeiro animal (leão com asas de águia) simboliza o reino neobabilônico (625-539 a.C.), cujo principal monarca foi Nabucodonosor (604-526 ac); com efeito, no cap. 2 a cabeça de ouro da estátua é explicitamente identificada com Nabucodonosor e seu reino (cf. 2,37s). Dizendo que o leão perdeu as asas e recebeu um coração de homem (cf. 7,4), o autor sagrado queria talvez aludir à cena do c. 4 : o monarca se tornou mais humano após reconhecer o verdadeiro Deus.
O segundo animal (urso que se erguia sobre um dos seus lados apenas e tinha na boca três costelas) significa o reino dos medos, que, conforme as perspectivas de Daniel (cf. 6,1), se sucedeu ao dos babilônios. Corresponde ao peito e aos braços de prata da estátua (ver Dan 2.32). Esta interpretação é confirmada por Dan 8,20. O reino dos medos, sendo mais fraco que o de Nabucodonosor (cf. 2,39), é apresentado em estado de desequilíbrio (erguido sobre um dos seus lados apenas).
O terceiro animal (leopardo com quatro asas e quatro cabeças) representa o reino dos persas (538-333 a.C.); corresponde ao ventre e às coxas de cobre da estátua, em 2,32.39. Também em Dan 8,20 se obtém a confirmação desta exegese. As quatro asas simbolizam os quatro cantos do mundo aos quais se estendeu o domínio persa; os quatro chifres são quatro reis da Pérsia, os únicos (dentre nove) que o autor sagrado parecia conhecer (Ciro, Cambises, Dario I e Xerxes I; cf. 11,2).
A quarta fera finalmente não se assemelha a algum dos animais da terra: tinha dez chifres, entre os quais surgiu repentinamente outro pequeno chifre, que arrancou três dos anteriores. É, de acordo com Dan 2,40; 8,5.21; 11,3, o símbolo do império macedônio de Alexandre Magno (336-323 a.C.). Os dez chifres são os três generais e os sete reis que se sucederam a Alexandre no governo da Síria; a estes seguiu-se Antioco IV Epifanes (175-163), o pequeno chifre, que só obteve prestígio depois de haver eliminado alguns de seus rivais (designados pelos três chifres arrancados, em 7,8). Antioco IV é o perseguidor do povo judaico que provocou a heroica resistência dos Macabeus. Os traços com que é descrito em 7,7s e 7,23-25 coincidem com os que o caracterizam em 8,9-14. 23-25; 11,21-45; estes trechos posteriores ajudam a compreender o cap. 7. Vê-se que Antioco Epifanes era tido como figura do Anticristo; São Paulo mesmo, em 2 Tess 2, 3-10, descreve o Anticristo aludindo aos dizeres de Daniel. Conforme Dan 7,25, o perseguidor sírio (o pequeno chifre) procurou mudar os tempos e a lei, porque quis proibir aos judeus a observância do calendário sagrado (cf. 1 Mac 1,41s.43-52); oprimiu o povo eleito durante um tempo, tempos e meio-tempo», isto é, durante três anos e meio (desde a missão de Apolônio em Jerusalém no mês de junho de 168 até a nova dedicação do Templo em dezembro de 165); cf. Dan 4,13; 8,14; 9,27; 12,7. O número «três e meio», metade de «sete» (que é o símbolo da perfeição, segundo a mentalidade antiga), designa na Escritura a calamidade, calamidade, porém, que não chega a devastar tudo, pois é oportunamente detida por Deus.
Justamente durante a perseguição de Antioco Epifanes (entre 168 e 165) parece ter sido redigido o cap. 7 do livro de Daniel. O hagiógrafo visava corroborar o ânimo dos judeus oprimidos, fazendo-lhes ver como a história, desde os tempos de Nabucodonosor, se desenrolava sob as disposições da Providencia Divina. Curta e frustrada, queria ele dizer, seria a perseguição movida por Antioco (era caracterizada pelo número 3,5); a ela se seguiria o reino messiânico, o reino do Filho do Homem e dos santos, cuja instauração é solenemente descrita em 7,9-14; tal reino seria eterno, jamais sujeito à destruição. Que se avivasse, pois, a esperança dos leitores judeus, acabrunhados pela luta religiosa!
Como se vê, ao redigir o cap. 7 de Daniel, o hagiógrafo, por volta de 165 a. C., tinha em vista a história pretérita e as circunstâncias em que se achava o povo do Israel; era a tais elementos que ele queria aludir mediante os seus símbolos, particularmente mediante a figura dos quatro animais poderosos Seria errôneo, portanto, procurar a interpretação do quarto animal na história posterior ou na época do Cristianismo; neste caso quebrar-se-ia a linha de pensamento do hagiógrafo; o livro de Daniel perderia sua estrutura e deixaria de significar algo para os seus leitores. Quando o hagiógrafo alude ao futuro (o que se dá depois de haver introduzido as quatro feras), descreve-o com todo o otimismo: é a vinda do Filho do Homem e a obra deste, a Igreja, que ele propõe como farol de esperança aos seus leitores; de modo nenhum visa incriminar o advento de Cristo no limiar da era cristã nem a Igreja em que Jesus vive e reina através dos séculos.
Percebe-se assim, após uma reflexão serena, quão descabido é identificar o quarto animal de Dan 7 com a Igreja Católica.
Olá, Cooperadores da Verdade! Sou muito fã do trabalho de vocês. Venho aqui pois gostaria de lhes perguntar a respeito de uma outra interpretação. Antes de tudo, sou favorável a interpretação que vocês defendem no artigo. No entanto, vi alguns padres interpretando de outra forma, colocando a quarta fera como o império romano, sendo então o império alexandrino e suas suscetíveis divisões entre os generais de Alexandre como a terceira fera. Gostaria de lhes perguntar: como procederia o restante desta interpretação? Ela se sustenta? A Igreja definiu alguma das interpretações como certa?