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Por que a Igreja é tão inflexível em certas questões?

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Igreja é intransigente e dura em certos pontos. Isto escandaliza, pois estamos numa época em que é preciso remover todo fanatismo e tornar-nos largos e compreensivos.

negavelmente, a Igreja sempre se mostrou, e continua a se mostrar, intransigente ou inflexível em algumas de suas afirmativas.

Verdade é que nem todas as atitudes intolerantes e duras dos católicos no decorrer dos séculos (ou também em nossos dias) foram inspiradas pela autoridade oficial da Igreja; muitas mesmo eram contrárias à mente e às instruções oficiais da Esposa de Cristo. Esta não as aprova; antes, repudia-as na medida em que são a expressão de mesquinhez e cego individualismo (tenham-se em vista, por exemplo, o processo de Sta. Joana d’Arc, a «noite de São Bartolomeu», certos quadros da Inquisição…), de que tratamos respectivamente em «P. R.» 8/1958, qu. 9; 1/1958, qu. 12; 8/1957, qu. 9.

Contudo a Igreja não rejeita a censura de ser inflexível em determinados pontos de doutrina e de Moral; Ela não aceita qualquer pacto ou conciliação nestes setores (assim, por exemplo, no tocante ao divórcio, ao emprêgo de métodos anticoncepcionistas, ao pecado original, ao inferno…), embora a mentalidade moderna encare estas proposições com ceticismo. Numa palavra: em tudo que é essencial dentro da mensagem de Cristo, a Igreja julga não poder fazer concessão às preferências dos homens; em questões, porém, acidentais (como sejam formas de devoção, uso do vernáculo na Liturgia, celibato, etc.), a Igreja pode adaptar praxes antigas aos postulados da vida moderna (Ela deseja mesmo tais adaptações, desde que não afetem o dogma ou os princípios da Moral cristã).

Muitos dos nossos contemporâneos se dão por perplexos diante de rigidez aparentemente tão odiosa. «Cristo não seria mais conciliante?», perguntam. «A caridade não nos ensina a esquecer os nossos pontos de vista pessoais a fim de não nos separarmos do próximo? Se a Igreja não o faz, como pode ser a verdadeira continuadora da obra de Jesus Cristo?»

Assim enunciado o problema, vejamos como a Igreja justifica a sua posição. Está claro que Ela só faz questão de defender a inflexibilidade que Ela, oficialmente por sua hierarquia, professa em matéria de fé e de Moral; não defende a intransigência, às vezes mal concebida, de alguns de seus filhos.

Motivo de escândalo ou de admiração?

Quem reflete serenamente sobre a propalada intransigência da Igreja, verifica que, em vez de ser motivo de escândalo, deve antes ser tida qual motivo de admiração e apreço. Com efeito, a firmeza da Igreja ao propor o que Ela julga ser essencial na mensagem do Evangelho, é sinal de que Ela tem consciência de estar com a verdade. Ë sòmente a verdade clara— 278 — mente percebida que solicita a adesão da inteligência, de maneira absoluta, até a própria morte.’ Se a Igreja não fosse tão tenaz nos temas essenciais da sua pregação, estaria implicitamente confessando que sua mensagem não se impõe com o fulgor da verdade; o mundo estaria então dispensado de Lhe dar atenção e poderia burlar-se dela, pois contentar-se com posições duvidosas, com «meias-verdades» ou com relativismo doutrinário, é atitude indigna da inteligência humana. Esta possui tendência espontânea e inelutável a sondar a verdade e a abraçá-la. com todos os recursos postos ao seu alcance; querer que as inteligências se saciem com doutrinas vagas é ofendê-las…

Haja vista o caso de quem diz: «Dois e dois são quatro». Tal afirmação se impõe com tanta pujança à inteligência que a esta é impossível aceitar qualquer outra tese («dois e dois são três» ou «dois e dois são cinco»); nem a cultura de uma época, nem as modas de uma civilização, nem sequer a simpatia ou a amizade dos homens podem fazer que alguém se afaste sinceramente (ou com dignidade humana) dessa proposição. E — note-se bem — tal pessoa, embora irredutível, sabe que não está sendo mesquinha nem fanática, pois não está defendendo um produto subjetivo de sua mente ou um ponto de vista pessoal, mas, sim, um patrimônio comum a todo o gênero humano, que é a VERDADE. Aqueles que têm consciência de ser portadores desse patrimônio; não gozam do direito de o diluir (nem mesmo para ser simpáticos ou «bonzinhos» para com outrem), porque isto redundaria em detrimento da humanidade toda. A benevolência para com o próximo, nesses casos, consiste justamente em ser firme e tenaz na medida em que isto 6 necessário para salvaguardar o patrimônio ou o bem comum.

A verdade recusa meias-soluções… Esta proposição se torna de todo evidente desde que se levem em conta certas atitudes espontâneas da personalidade humana. A este propósito a Sagrada Escritura apresenta um episódio que se tornou como que proverbial na literatura do gênero humano e que muito bem ilustra as ideias acima.

Nos tempos do rei Salomão de Israel (séc. X a. C.), duas mulheres deram & luz no mesmo aposento, com o intervalo de três dias uma da outra. Aconteceu, porém, que uma delas, ao dormir, esmagou seu próprio filho; imediatamente então colocou a criança morta no leito da companheira e tirou para si o filhinho vivo desta. Contudo a genitora frustrada, ao verificar de manhã que a criança morta não era a sua, pôs-se a litigar com a vizinha insidiosa. Em consequência, foram ambas ter com o rei Salomão para pedir-lhe que lhes fizesse justiça. O monarca, estranho como era ao caso, talvez fosse a pessoa menos habilitada para identificar a verdadeira mãe da criança viva. Lembrou-se, porém, da sabedoria contida na proposição acima e resolveu a ela recorrer… Como?

Já que as duas mulheres pretendiam afirmar a verdade, decidiu optar por uma solução de conciliação ou uma meia-solução: a criança seria partida ao meio por uma espada e cada uma das duas mulheres receberia a sua metade. Neste momento então a verdade protestou pelos lábios da genuína mãe… Esta suplicou ao rei que não aplicasse a meia- solução; seu autêntico amor materno levava-a a preferir que o menino fosse entregue à sua rival, contanto que permanecesse inteiro e vivo.

Ao contrário, a falsa genitora insistia na pretensa solução conciliatória. — Diante da nova situação, o rei Salomão já não hesitou : mandou dar a criança à mulher que não aceitava meia-solução, pois esta, assim procedendo, lhe parecia estar com a verdade; tal intransigência era, de fato, pedra de toque da genuinidade, ao passo que a aceitação do meio- -termo por parte da rival vinha a ser a melhor prova de falsidade desta (cf. 3 Rs 7, 16-27).

Ora algo de semelhante se dá em se tratando de filosofia e Religião : quem professa a verdade, não pode aceitar soluções simplistas que mutilem o patrimônio da inteligência, ao passo que quem está no erro estará sempre pronto a conciliação e pactos amorfos, ambíguos (o que bem se entende, pois, mudando de posição doutrinária, a pessoa que está no erro, nada tem a perder; pode mesmo ganhar, pois pode ser pro movida à compreensão da verdade).

P. Charles, em seu estilo característico, explicita estas ideias:

Posso fazer concessões a respeito de objetos que me pertencem, abrindo mão de meus direitos; mas, quando se trata de coisas que não me pertencem e de direitos alheios, “pactuar” é desonesto ou mesmo absurdo. O mais célebre professor de matemática, membro de todas as Academias eruditas, não pode conceder a mínima mudança na tabuada de multiplicação nem na tabela de logaritmos, porque a verdade aritmética não pertence a ele e porque toda a sua ciência consiste precisamente em demonstrar o que se chama com rigor as «propriedades» dos números. Poderei insistir pedindo-lhe que, por hoje e por exceção, 7 vezes 7 valham 50, e não 49. Poderei dizer-lhe que minha felicidade, minha vida e a de toda a minha família dependem dessa concessãozinha. Em vão, porém. O mesmo aconteceria se pedíssemos a um astrônomo que retardasse por alguns minutos a hora de uma eclipse para dar a Sua Santidade o Papa a ocasião de a observar. Papa, Presidente, doméstica, cocheiro… a hora da eclipse é a mesma para todos. Não é o astrônomo quem a decreta. Ele apenas a calcula e a anuncia. Nada posso conceder no terreno da verdade. Ela não me pertence. Qualquer concessão ai vem a ser mentira.

(L’Eglise, Sacrement du monde. Desclée de Brouwer 1960, pág. 151)

Pois bem. A atitude do pensador que afirma «dois e dois são quatro» e que até o fim é coerente com esta afirmação, a Igreja a assume no tocante às noções de Deus, do homem e do mundo. E é precisamente esta firmeza que a deve impor ao respeito do •público, em vez de lhe merecer desprezo ou ódio.

Um pouco de história

Certamente não são interesses próprios ou mesquinhos que levam a Igreja a ser «intransigente» em matéria de dogma ou de Moral. Basta considerar as afirmações dessa intransigência no decorrer dos séculos… : «custaram caro» à Esposa de Cristo, que, em consequência, se sujeitou a perder favores e vantagens humanas.

Haja vista o caso mais característico, que é o do divórcio pleiteado peio rei Henrique VIII da Inglaterra no séc. XVI. O Papa cometeu a «loucura» de não o conceder, asseverando que estava em jogo o genuíno conceito de matrimônio. O resultado desta atitude intransigente foi o cisma anglicano, que arrebatou milhões de fiéis à jurisdição da Igreja; se Esta se tivesse acomodado ao monarca inglês, teria evitado o golpe que, humanamente falando, equivalia a um prejuízo para o prestigio da Igreja.

Semelhante intransigência se registrou quando o rei Filipe Augusto da França em 1193 começou a aborrecer sua esposa legítima, a princesa dinamarquesa Ingeburga, pretendendo casar-se em novas núpcias com uma jovem bávara, Inês de Merânia.

O Papa Inocêncio III escreveu então ao rei: «A Santa Sé não pode abandonar sem defesa as esposas perseguidas. De outro lado, a dignidade de um rei não pode estar acima dos deveres de um cristão; por conseguinte, neste setor fica-nos vedado fazer qualquer distinção entre o monarca e os demais fiéis. Se, contra toda expectativa, o rei da França desprezar nossa advertência, estaremos, muito a contragosto, obrigados a levantar contra ele a nossa mão apostólica. Nada no mundo será capaz de Nos desviar desta firme resolução de justiça e de direito. Se Filipe Augusto recusar separar-se de Inês de Merânia e retomar Ingeburga, todo o reino da França será submetido ao interdito, e, caso o monarca se obstine, ele e sua cúmplice serão atingidos por excomunhão».

O litígio se protraiu por vinte anos, sem que a Santa Sé cedesse, embora a inflexibilidade lhe acarretasse não poucos dissabores.

Talvez à primeira vista não se perceba todo o significado destas atitudes da Sta. Igreja. Ele se evidenciará plenamente caso seja confrontado com o procedimento dos «Reformadores» da Igreja postos em circunstâncias análogas.

Com efeito. O príncipe Filipe de Hesse, na Alemanha, grande protetor de Lutero, desde 1523 estava casado com Cristina da Saxônia, da qual tinha sete filhos; desejava, porém, uma «segunda esposa legitima», Margarida von Saale, pedindo a Lutero e a seus teólogos que lhe concedessem a autorização para a esposar religiosamente. — Lutero, pelo que consta, não raro dava tais licenças, mas por via meramente oral, à guisa de «conselho de confissão». Filipe, contudo, desejava a licença por escrito; finalmente Lutero lha concedeu aos 10 de dezembro de 1539, o que deu lugar ao casamento «à moda turca» (como se dizia popularmente) aos 4 de março de 1540 em presença de Melancton, Bucer e Eberardo de Thann. A noticia de que Lutero consentira em tal procedimento (dizia-se mesmo que havia recebido em troca um barril de vinho!) não tardou a se espalhar, com grande alarde, entre o povo; a bigamia era proibida não somente pela consciência cristã, mas também por lei do Império alemão. Lutero então tranquilamente pôs-se a ensinar que era necessário negar a existência da autorização por ele dada, fazendo a seguinte observação : «Que mal há em que se profira abertamente uma boa mentira, desde que se tenha em vista um bem maior e a prosperidade da Igreja cristã?»

Caso semelhante se verificou com Carlos Luis, eleitor palatino (Alemanha). Em 1658 os teólogos protestantes lhe concederam a licença para viver em bigamia no seu castelo de Heidelberg, tomando como segunda mulher Luísa de Dagenfeld, dama de honra de sua legítima esposa. Os Juristas protestantes justificavam a concessão, alegando que ao príncipe civil compete a soberania religiosa (ou a organização do Cristianismo) no seu respectivo território; por conseguinte, não seria licito às autoridades da Igreja querer impedir tais «soluções» para casos difíceis.

Um confronto entre a atitude «intolerante» da Igreja Católica nos dois primeiros episódios apontados e a posição dos reformadores «tolerantes» parece não deixar dúvida a respeito da decisão a se tomar diante do dilema: transigência ou intransigência frente a questões essenciais? — A tolerância em tais casos acarretou,” e acarretará sempre, aviltamento da dignidade humana (tenha-se em vista que poligamia e divórcio contrariam a própria lei natural, anteriormente mesmo à mensagem de Cristo).

A tenacidade da Igreja para suportar, desde os seus primórdios, tantos dissabores e lutas (que poderiam ser evitados, se Ela se mostrasse mais flexível) não será o testemunho, dado pelo próprio Deus, de que a Igreja está realmente de posse da verdade? Parece que só um dom do céu seria capaz de vivificar dessa forma a Esposa de Cristo e suas atitudes; ora o Senhor não comunicaria esse dom para que se implantasse o erro, e os homens fossem seduzidos; donde se conclui que o Senhor Deus mesmo, dando à Igreja tal tenacidade, quis confirmar a veracidade dos ensinamentos que Eia propõe com santa intolerância; vê-se assim que a convicção com a qual Ela se afirma no mundo, não é meramente subjetiva e ilusória, mas corresponde à realidade objetiva das coisas; é portanto, autêntico sinal da verdade.

De resto, as credenciais da Igreja Católica para propor a verdade em nome de Deus já foram estudadas em «P. R.» 39/1961, qu. 2.

Procuraremos agora ilustrar o que fica dito aqui sobre a necessidade de atitudes coerentes, observando

O que se dá na própria natureza…

Entre outras muitas, parecem impor-se duas verificações capazes de iluminar a questão que estamos estudando:

1) Tanto entre os seres animados (viventes) como entre os inanimados (não-viventes), a ordem e a harmonia são algo que só se mantém à custa de leis precisas e severa disciplina.

a) Lancemos um olhar primeiramente para o reino das criaturas animadas ou viventes.

Já se tem dito que a vida neste mundo constitui um constante paradoxo e como que um desafio a todas as leis das probabilidades. .. De fato, o equilíbrio dos elementos que entram na constituição de um corpo vivo é algo de muito complexo e frágil; está incessantemente comprometido e é incessantemente restaurado.

Basta, por exemplo, a variação de cinco graus de temperatura num organismo vivo para que este se ache à beira da morte; a ruptura de pequeno vaso sanguíneo na cabeça acarreta logo paralisia de funções do vivente. Sem precisar de acumular os exemplos (que neste setor são evidentíssimos), concluímos que a vida, justamente por ser muito delicada, só se conserva mediante estrita disciplina; as possibilidades de oscilar em seu ritmo próprio são assaz limitadas.

b) No reino dos inanimados, as intransigências não são menos impressionantes.

Tenham-se em vista, por exemplo, o rigor do fotógrafo, que faz questão de um décimo de milímetro para conseguir imagem bem focalizada e nítida; a intolerância do farmacêutico, que por vezes dosa as suas porções com a precisão de um quarto de miligrama, a fim de que o remédio seja eficaz, em vez de redundar em veneno mortal; o empenho do oficial de guerra, que calcula o lançamento de seus foguetes ou o tipo de seus canhões até a última decimal, empenho este absolutamente necessário dar a evitar hecatombes e catástrofes desconcertantes.

A baqueta do regente de orquestra é ainda mais intolerante do que o cacete do guarda policial; contudo ninguém se indigna contra o regente; ao contrário, todos o aclamam.

Um circulo ao qual quiséssemos dar raios de tamanho desigual, de acordo com o «gosto da época», deixaria simplesmente de ser círculo.

Sobre as cédulas monetárias ainda em nossos dias se lê por vezes a ameaça intransigente: «Qualquer tentativa de falsificação será punida pelas penas da lei» (as quais costumam ser rigorosas).

Essas afirmações de coerência entre os seres materiais vêm a ser indispensável condição de subsistência e prosperidade do mundo e do gênero humano. Elas nos sugerem com eloquência que no plano dos valores da inteligência, ou no plano dos conceitos, não pode haver menor rigor; admitir o relativismo da verdade é simplesmente negar a esta.

Embora todo homem repudie espontaneamente o que lhe opõe resistência, não há quem não saiba que abolir as resistências equivale a abrir o caminho para a morte. Em linguagem «chestertoniana» dir-se-ia: ninguém pode galgar unia montanha de geleia, porque tal massa gelatinosa não resistiria à pressão dos passos do herói; antes, ela o tragaria vivo, ocasionando-lhe a ruína total. Uma régua de borracha deixa de ser uma medida… Ora assim também um Deus que a ninguém «incomodasse», mas que fosse plasmável segundo o gosto de cada um, não passaria de ídolo vão; igualmente uma Igreja que renunciasse a ser intransigente na sua profissão de fé, não poderia merecer senão o desprezo dos homens.

Para melhor compreender essa intransigência da Igreja Católica, analisaremos agora outro fenômeno «paradoxal» ocorrente na natureza.

2) Todo genuíno amor é, em grau maior ou menor, intolerante, e tanto mais intolerante quanto mais frágil é o seu objeto.

A mãezinha que queira defender a saúde ou a honra de seus filhos, torna-se agressiva justamente porque ama a prole. O médico e a enfermeira que querem bem a seu pacientes (e justamente por lhes querer bem) não dão sempre ouvidos aos gemidos e protestos destes, mas impõem-lhes intolerantemente dietas, medicamentos e outros cuidados violentos, na medida em que isso é essencial para a cura.

Aliás, merece atenção o fato de que, no Evangelho mesmo, Jesus, de um lado, manda amar todos os homens, até os inimigos (cf. Mt 5,44); de outro lado, porém, afirma : «Não vim trazer a paz, mas a espada sobre a terra» (cf. Mt 10,34), ou também : «Aquele que ama seu pai, sua mãe, seu filho ou sua filha, mais do que a Mim, não é digno de Mim» (cf. Mt 10,37). A aparente contradição se explica pelo fato de que o verdadeiro amor tem que saber remover enèrgicamente tudo que se opõe ao bem do objeto amado; em caso contrário, nem sequer seria amor, mas «diletantismo» egocêntrico.

Por isto todo amor verdadeiro, principalmente o amor que o cristão dedica a Deus e aos homens, pode levar a uma. santa luta (simbolizada pela espada do Evangelho), luta esta que vem a ser por vezes a necessária salvaguarda da vida e de valores e que se opõe a qualquer paz de cemitério (esta seria, em aparência, prazenteira, mas, na realidade, «máscara» do vazio e da morte).

Tal luta, é claro, visará sempre as instituições más, ou o pecado, nunca porém as pessoas que cometem o mal ou o pecado. Em favor dessas pessoas também morreu Cristo; por isto, em toda e qualquer hipótese, o cristão as deverá amar, desejando-lhes o bem : «Que o cristão odeie o pecado, mas ame o pecador», exortava sàbiamente Sto. Agostinho.

«Todo verdadeiro amor é portador de armas e está disposto a servir-se delas. Um amor neutro ou indiferente é tão contraditório quanto uma sinfonia silenciosa ou uma ceia sem alimentos» (P. Charles, ob. clt. 146).

O paradoxo do Cristo que ama violentamente, se apresenta outrossim na história de Sta. Teresa de Ávila. Certa vez, por ocasião de uma de suas viagens de Reformadora carmelita, a santa sofreu um acidente que a contundiu seriamente. Exclamou então com a espontaneidade de sua alma : «Ah, Senhor, quando deixarás de disseminar tais dificuldades sobre os nossos caminhos? — Não te queixes, filha, respondeu-lhe o Divino Mestre; é assim que trato os meus amigos. — Pois bem, Senhor; é por isto também que tens tão poucos amigos!» (Histoire de Sainte Thérèse d’après les Bollandistes t. 2, 1888, pág. 362).

A cena supõe uma verdade básica para o cristão : toda tribulação implica em purificação e santificação (assemelha-se a um instrumento que «raspa a ferrugem» da alma ou os resquícios do pecado). É, por conseguinte, um valor; compreende-se então que, esse valor, o Senhor não possa deixar de o destinar aos seus amigos.

As observações acima levam a ver que a intransigência da Igreja há de ser entendida, em última análise, como intransigência materna; é, sim, o sinal do amor que a Igreja dedica à humanidade :

Para preencher o seu papel materno, a Igreja deve desenvolver uma ação protetora. Ora ninguém protege coisa alguma pela inércia da tolerância… A Igreja é intolerante, porque a sua grande, a sua única missão de amor consiste em proteger, contra todas os perigos que o ameaçam destruir em nós e nos outros, o tesouro valioso que somos nós mesmos e que muitas vezes nem suspeitamos ser. Não nos queixemos das suas atitudes rigorosas, mesmo quando nos incomodam e mortificam.

(P. Charles, ob. cit. 152)

Eis as duas observações que a natureza das coisas em sua existência cotidiana nos sugere a respeito do dilema «flexibilidade ou inflexibilidade?». Vê-se que querer escapar a certa inflexibilidade (ainda que seja apenas no plano da Religião) equivale a destoar do testemunho comum das crianturas que cercam o homem; pode equivaler a um suicídio da mente e da dignidade humana.

Faça-se ouvir ainda uma outra modalidade de testemunho.

O depoimento de não-católicos

Tão óbvia é a necessidade de uma santa intransigência (intransigência esclarecida pelos princípios acima enunciados) que até mesmo escritores não-católicos a reconhecem.

Eis, por exemplo, o testemunho do Professor evangélico Hans Liermann, docente de Direito em Erlangen (Alemanha) :

Não se poderia exigir de alguma sociedade religiosa a tolerância dogmática, pois toda sociedade religiosa crê possuir em cada um dos seus dogmas um tesouro inamissível de verdade. Se ela permitisse que tal tesouro fosse posto em xeque, ela renunciaria a ser o que deve ser. Poderia então julgar não possuir senão uma verdade relativa; eis, porém, que a verdade relativa, a qual propõe com ceticismo… a velha questão de Pilatos («Que é a verdade?»), não pode servir de base a uma sociedade religiosa. Segundo as leis da sociologia religiosa, uma Igreja que sofra de tal enfraquecimento em sua estrutura dogmática, está fadada a desaparecer cedo ou tarde… porque se terá tornado infiel ao seu verdadeiro e supremo objetivo. Por isto faz-se mister contar com o fato de que toda Igreja deve ser intolerante do ponto de vista dogmático.

(Deutsche Beitraege zum Amsterdamer oekumeni- schen Gespraech. Stuttgart 1948,191s)

Não seria licito deduzir deste texto que toda e qualquer confissão religiosa (Catolicismo, Protestantismo, Islamismo…) tem igual direito à inflexibilidade e que, por conseguinte, a verdade é relativa (dependeria da intuição subjetiva de cada indivíduo ou cada grupo, e não se imporia a todos os homens). — Não é este o problema que Liermann tem em vista; apenas lhe interessa definir uma nota característica da Religião ou da sociedade religiosa como tal: desde que se fale de Religião, quer ele dizer, fala-se de algo que professa firmemente a verdade; se não se aceita isto, nem sequer vale a pena falar ou tratar de Religião, pois Religião relativista é contradição ou caricatura.

O relativismo religioso é explicitamente rejeitado por outro vulto evangélico, o Prof. David Lerch, de Zuerich :

Não nos é possível de modo algum dar o mesmo valor a duas afirmações opostas entre si no plano da moral ou da Religião.

(Das Problem der Toleranz in theologischer Sicht. Zuerich 1948, 10)

Outras vozes, ainda mais recentes, se têm feito ouvir em sentido análogo, por ocasião dos preparativos do próximo Concílio Ecumênico : muitos evangélicos recusam qualquer tipo de união entre cristãos obtida com detrimento para a verdade.

Assim se exprime, por exemplo, a Federação Evangélica Luterana da Alemanha em um dos seus comunicados :

Somente quando a situação aparecer clara e nítida, poderemos conseguir verdadeiro progresso nas relações entre as diversas confissões cristãs. Ora o reconhecimento claro da situação requer que, de parte a parte, renunciemos a calar as divergências, a fazer reticências levianas, a empregar de maneira simplória as palavras «caridade» e «união».

(cf. K.N.A., Informat.-Dienst 21/1/61, pág. 6)

Asmussen, membro de notável movimento renovador protestante, observa :

A grande possibilidade de que Roma e Wittemberg (Catolicismo e Protestantismo) se encontrem pacificamente por ocasião do Concilio, não deve ser destruída por concessões fáceis o ilícitas.

(Ein hoher Preis ist zu zahlen, em «Christ und Welt», 16 de abril de 1959, n. 10)

Outro escritor evangélico, J.R. Nelson, acentua que caridade, verdade e unidade constituem uma só coisa ou são valores inseparáveis entre si (na revista anglicana «Unitas» 1960, pág. 143).

A coragem que os irmãos separados tiverem para enfrentar a verdade, será penhor de êxito nas tentativas ecumenistas da hora presente.

Conclusão

À guisa de fecho de quanto expusemos, fique aqui consignado o lema antigo que o Papa João XXIII apresentou de novo em 1959 como norma áurea a ser observada por todos aqueles que sinceramente desejam promover a união dos cristãos entre si: «Nas coisas essenciais, haja unidade; nas acidentais, liberdade; em tudo, porém, caridade»).

Estes dizeres sugerem que, enquanto guarda inflexibilidade nas questões essenciais de doutrina e Moral, o genuíno cristão saberá ser largo e compreensivo frente aos mais diversos valores humanos compatíveis com a verdade. É o que o mesmo Sto. Padre João XXIII recorda em uma alocução proferida a escritores e artistas de raça negra, reunidos no seu II Congresso Mundial em abril de 1959 :

Em toda parte onde autênticos valores da arte e do pensamento são suscetíveis de enriquecer a família humana, a Igreja está pronta a favorecer esse trabalho do espírito. Bem sabeis que Ela não se identifica com cultura alguma, nem mesmo com a cultura ocidental, à qual todavia sua história está Intimamente ligada. Pois a sua missão é de outra Índole: visa a salvação religiosa do homem. A Igreja, porém, cheia de juventude incessantemente renovada pelo sopro do Espírito, permanece disposta a reconhecer, a acolher, e mesmo a amar tudo que redunde em honra para a inteligência e o coração humano em outras plagas do mundo que não esta bacia mediterrânea, a qual foi o berço providencial do Cristianismo.

(L’Osservatare Romano 3/IV/1959; Documentation Catholique 26 de abril de 1959, 525)

Donde se vê que, se a verdade repele qualquer «pacto» ou desvirtuamento traiçoeiro, ela não rejeita com menos veemência a posição contrária, ou seja, todo estreitamento desnecessário e sufocador.

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