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Qual a doença de São Paulo?

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Os santos de Deus são figuras grandiosas, em que muitas vezes os contrastes se associam, de modo a se perceber que não foram eles que se fizeram grandes, mas, sim, a gratuita liberalidade divina.

À luz desta afirmação deve ser considerada a personalidade do Apóstolo São Paulo. Realizou grandes viagens missionárias, na primeira das quais deve ter percorrido mais de 1000 km; na segunda, ao menos 1400 km; na terceira, cerca de 1700km (o percurso das viagens apostólicas posteriores, não mais referidas pelos Atos dos Apóstolos, não pode ser devidamente calculado). Essas enormes trajetórias (desde que não fossem marítimas), São Paulo as efetuava geralmente a pé, através de regiões inóspitas e perigosas, comendo o exíguo alimento que podia encontrar, dormindo quando e como lhe era possível; caso fizesse estada mais longa em algum lugar, punha-se a trabalhar com as próprias mãos (era curtidor de peles!) a fim de ganhar o pão cotidiano; além do mais, era solicitado por notícias e preocupação variadíssimas, as quais, embora lhe afetassem diretamente o espírito, não podiam deixar de lhe abater também o corpo. — Pois bem, São Paulo, durante anos a fio, levou tal gênero de vida (de 45 a 67, descontando-se talvez três ou quatro anos de prisão), o que certamente é prova de estupenda força de vontade.

Contudo não é menos certo que desde o ano de 43 o Apóstolo se via minado por moléstia crônica, que muito o fazia sofrer. Longe de se deixar abater, ele via justamente nesse fato a prova de que Deus, e não simplesmente a força humana, sustentava o seu brilhante apostolado: «É na fraqueza do homem que se revela plenamente a força de Deus» (cf. 2 Cor 12,9s).

Interessa-nos averiguar qual tenha sido a famosa enfermidade de S. Paulo, a qual vem sendo explicada dos mais diversos modos possíveis.

Dois são os principais textos que importa analisar: Gál 4,13-15 e 2 Cor 12,2-9. Consideremo-los separadamente.

Gálatas 4, 13-15

No ano de 54 aproximadamente, escrevendo aos cristãos da Galácia (Ásia menor), São Paulo lhes lembrava o seguinte:

Sabeis que foi por causa de uma enfermidade que vos anunciei o Evangelho pela primeira vez. E, apesar de meu corpo enfermo ser para vós uma provação, nenhum desprezo ou desgosto manifestastes. Pelo contrário, vós me recebestes como um anjo de Deus, como o Cristo Jesus… Dou-vos meu testemunho: se fosse possível, teríeis arrancado vossos olhos para mos dar.

(Gál 4,13-15)

Estas palavras dão-nos a saber que certa vez, estando o Apóstolo de viagem pela Galácia, foi acometido de grave moléstia, que o obrigou a interromper o seu itinerário; aproveitou então o ensejo para comunicar a mensagem de Cristo à população que o acolhera.

São Paulo não explica qual tenha sido a doença. Certamente reduziu o paciente a situação humilhante, capaz de causar repugnância em quem o visse. Sim, o Apóstolo, no v. 14 acima traduzido, dizia ao pé da letra : «A tentação que o meu estado corporal vos suscitava, não provocou em vós desprezo nem vos fez cuspir = (oudè exeptnsate)».

A origem desta última expressão (oudè exeptúsate) deve-se a um costume pré-cristão: quando viam um enfermo de aspecto degradante, os pagãos cuspiam diante dele, visando com isto afugentar o espírito maligno que devia estar infestando o paciente. Principalmente a epilepsia provocava tais reações; era o «comitialis morbus» ou «a doença dos comícios, a doença que por excelência estragava qualquer comício», pois, se ocorresse um caso de epilepsia durante uma assembleia popular, os maus presságios levavam os chefes a anular as deliberações tomadas e a dispersar o agrupamento.

Pois bem, os gálatas, considerando a coragem e a tranquilidade com que Paulo suportava a moléstia, longe de demonstrar horror, lhe deram as provas da mais ardente caridade; teriam mesmo arrancado os próprios olhos em favor de Paulo, caso isto fosse possível…

Poder-se-ia concluir desta observação que o Apóstolo na Galácia padeceu de moléstia da vista ?

A ilação seria forçada, pois a expressão «arrancar os próprios olhos em benefício de alguém» tinha outrora (como ainda hoje em algumas línguas modernas) sentido figurado; significava «estar pronto a fazer os mais árduos sacrifícios em proveito do próximo» ; os olhos são, sem dúvida, os mais preciosos órgãos do corpo humano.

Já o exegeta Seligmíiller observou que quem quisesse tomar ao pé da letra a mencionada expressão para daí concluir algo sobre a moléstia de São Paulo, deveria outrossim admitir que o Apóstolo sofria grave enfermidade no pescoço, pois, como diz São Paulo em Rom 16,4, Priscila e Áquila se expuseram a «perder a nuca» para salvar a vida do Apóstolo (o que certamente se deve entender em sentido metafórico).

Também não se poderia afirmar que S. Paulo na Galácia haja sofrido de ataques de epilepsia. Embora esta seja uma das doenças que mais desfiguram o paciente, causando horror nos espectadores, outras realizam semelhante efeito, desde que provoquem febre alta com delírio.

Em conclusão: de Gál 4,13-15 apenas se pode deduzir que São Paulo foi no ano de 51 (aproximadamente) acometido de grave moléstia. Qual terá sido essa enfermidade? Deverá ser identificada com a doença habitual a que o Apóstolo se refere em 2 Cor? — São questões que não é possível elucidar peremptoriamente. Tentemos, porém, aproximar-nos um pouco mais da solução.

II Coríntios 12, 2-9

Em 57 S. Paulo, dirigindo-se aos coríntios, aludia mais uma vez a uma enfermidade sua… Referia-se a um episódio ocorrido havia quatorze anos, ou seja, no ano de 43:

«Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado até o terceiro céu — se no corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe.

E sei que esse homem — se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe — foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, que a um homem não é lícito revelar.

Quanto a esse homem, eu me gloriarei; quanto a mim, de coisa alguma me gloriarei, a não ser de minhas fraquezas… E por causa da sublimidade dessas revelações, para que não me encha de orgulho por causa delas, foi-me posto na carne um espinho — emissário de Satanás para me esmurrar. — a fim de que não me ensoberbeça. A esse respeito, por três vezes roguei ao Senhor que o fizesse afastar-se de mim. Respondeu-me: ‘Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que a força se manifesta plenamente’».

Nesta passagem importam-nos de maneira especial as alusões a «um espinho na carne» e a «um emissário de Satanás que esmurrava (kolaphizein, em grego; não rhapizein, esbofetear) o Apóstolo». Procuremos o sentido de uma e outra dessas locuções:

a) o «espinho na carne» sempre foi entendido, pela tradição cristã grega e latina, como enfermidade corporal que, desde a mencionada época, terá acometido S. Paulo. O vocábulo «carne» no caso não tem sentido pejorativo, mas designa simplesmente o corpo do Apóstolo, que parecia estar sendo continuamente aguilhoado. S. Paulo associa essa doença a uma especial ação de Satanás que destarte visava hostilizar o Apóstolo. Sim; a doença era

b) «um emissário (ángelos) de Satanás que esmurrava…». O vocábulo grego original «ángelos» não parece neste caso significar propriamente um espírito maligno (demônio) enviado por Satanás, mas deve ter sentido impessoal, designando apenas um efeito produzido por Satanás… A expressão se explica bem desde que se tenha em vista a opinião, comum entre os judeus antigos, de que as doenças eram provocadas pelo Maligno.

O Gênesis ensina que o sofrimento físico é consequência do pecado e que este, por sua vez, foi desencadeado no mundo por ação de Satanás (cf. Gên 3); daí a associação de «doença» e «demônio» na mentalidade judaica e, de certo modo, também na mentalidade cristã. Jesus ao ver uma mulher paralítica, interrogou: «Essa filha de Abraão, havia dezoito anos, estava presa por Satanás; não devia ela ser libertada dessa prisão em dia de sábado?» (Lc 13,16).

A análise de termos acima leva a concluir que a interpretação de toda a passagem focalizada depende do sentido da expressão «espinho» ou «aguilhão na carne». Ora esta tem índole metafórica e assaz vaga, de sorte a não permitir clara visão do que São Paulo quer dizer.

Algumas observações, porém, serão oportunas.

Certos escritores cristãos antigos e maior número de autores modernos de espiritualidade interpretam o aguilhão no sentido não de doença física, mas de tentações de incontinência continuamente suscitadas contra São Paulo por algum demônio («anjo de Satanás»). Cornélio a Lapide, escritor relativamente recente (+1637), asseverava que tal interpretarão era comum entre os fiéis de seu tempo. Adotando-a, os autores de ascese elaboravam, para as almas castas violentamente tentadas, exortações à perseverança estimulada pelo exemplo de São Paulo; quanto não poderia encorajar as almas a notícia de que o grande Apóstolo também fôra tentado contra a castidade!

Tal interpretação, porém, parece muito mais ditada por preocupações morais e parenéticas (exortatórias) do que pela leitura do texto em si. Note-se também que tal sentença se apoia em grande parte na tradução latina vulgata de 2 Cor 12,7: «stimulus carnis meae — aguilhão da minha carne»; esta tradução dá facilmente a entender que a carne manejava uma arma contra o espírito de S. Paulo, quando, na verdade, conforme o texto grego, o Apóstolo queria dizer que em sua carne (corpo) fôra plantado um aguilhão, ou seja, um motivo de sofrimento físico contínuo. — Também se deve levar em conta que São Paulo não parece ter sido muito sujeito aos pecados da carne: já antes da conversão ao Cristianismo, podia ele dizer que levava vida «irrepreensível conforme a Lei» (Flp 3,6); após a conversão, afirmava viver celibatário ou em perfeita continência, sem .que se possam presumir especiais dificuldades nesse seu gênero de vida (cf. 1 Cor 7,6-9). Ademais, longe de ser útil aos fiéis, São Paulo, mencionando suas tentações à incontinência numa carta dirigida aos cristãos de Corinto, muito assaltados pela corrupção da sua cidade, teria feito obra nociva ; vários dos leitores teriam talvez concluído : «Se o Apóstolo mesmo tanto tem que lutar, como poderemos nós, fracos discípulos, resistir à sedução?».

Na base destas observações, os exegetas em nossos dias já não aceitam a suposição que acabamos de focalizar.

Ficando no plano moral, alguns comentadores julgam que Paulo alude aos remorsos gerados em sua consciência pela recordação de haver perseguido a Cristo no principio de sua vida. Outros pensam tratar-se da dor experimentada pelo Apóstolo em vista da incredulidade de Israel. Há também quem diga que Paulo se referia às injúrias que lhe causava um inimigo seu pessoal, como Alexandre (mencionado em 2 Tim 4,14).

Essas sentenças gozam de pouca probabilidade, pois as imagens do espinho na carne e dos murros desferidos por Satanás sugerem um padecimento físico ou uma doença.

Contudo, ao procurar definir a moléstia corporal, muito divergem uns dos outros os exegetas.

A opinião mais antiga é referida por Tertuliano no séc. III: «… uma alma que, no Apóstolo, era reprimida por murros, isto é, a quanto dizem, por uma dor de ouvido ou de cabeça» (De pudicitia XIII 16). Outros comentadores sugeriram a doença da gota (Nicetas, no séc. V), uma doença de vísceras (S. Tomás de Aquino), reumatismo (Renan), surdez, violentas dores de dentes, lepra (Preuschen), etc.

Essas conjeturas são todas, em grau mais ou menos acentuado, arbitrárias.

Gozou de mais aceitação, principalmente no século passado, a suposição de epilepsia ou outro desequilíbrio nervoso; aos críticos racionalistas a hipótese era cara, pois explicaria a conversão e as visões do Apóstolo como meros fenômenos de alucinação, destituídos de valor sobrenatural. Apontavam-se, como casos análogos aos de Paulo, grandes heróis da história, os quais teriam sido igualmente epiléticos (assim Júlio César, Maomé, Ferdinando o Católico, Cromwell, Pedro o Grande, Napoleão, muitos artistas e literatos…); de resto, no fim do século passado predominava a escola de Lombroso, que afirmava haver afinidade entre desequilíbrio mental (epilepsia) e genialidade; São Paulo, por conseguinte, haveria sido um desses grandes desajustados da história…

Em breve, porém, verificou-se que vã era tal suposição; a tese de Lombroso carece do devido fundamento; além do que, temerário seria querer diagnosticar à distância os varões acima nomeados. Sabe-se outrossim que o epilético não guarda senão recordação confusa do que lhe acontece nos estados de crise; Paulo, ao contrário, conservou sempre consciência muito clara da sua visão em Damasco e do seu arrebatamento místico (cf. At 22, 6-21; 26,12-19; 2 Cor 12,2-9). Mais ainda: está averiguado que cerca de três quartos das pessoas epiléticas sofrem de defeitos intelectuais e morais que as tornam incapazes de dirigir almas; São Paulo, ao invés, comprovou dos mais variados modos a sua têmpera de chefe cheio de coragem e iniciativa.

Mostra-se estéril, por conseguinte, o recurso à hipótese de epilepsia ou mesmo histeria ou ainda outra doença nervosa no grande Apóstolo.

Em termos positivos, dever-se-á dizer que qualquer interpretação verossímil há de levar em conta as seguintes características: tratava-se de doença muito dolorosa («espinhosa»), manifestada em acessos violentos («murros de Satanás») e de índole crônica (cf. 2 Cor 12, 8s).

Ora, na opinião de Alio, Ramsay, Seligmüller, Sickenberger e outros bons autores, dentre todas as conjeturas, a que mais parece satisfazer a essas características é a que atribui a Paulo uma febre malária, também dita «febre de Malta» ou «febre napolitana», não rara na bacia do Mediterrâneo: causa enxaquecas e outras fortes dores, delírios noturnos, esgotamento físico por vezes deprimente, queda dos cabelos (conforme os apócrifos «Atos de Paulo», o Apóstolo era calvo) e pode acarretar a própria morte do paciente.

São Paulo terá contraído tal moléstia na sua pátria mesma, (Cilicia, na Ásia menor) ou em sua primeira viagem missionária (45-48) nos pântanos da Panfilia. Em qualquer caso, o início da doença deve-se ter seguido, sem grande intervalo, à visão de que fala o Apóstolo em 2 Cor 12; São Paulo compreendeu muito bem que a Providência Divina permitira tal enfermidade a fim de o preservar de ilusões a respeito de suas exíguas capacidades humanas: a doença, excitando constantemente no missionário a consciência de sua própria fraqueza, o conservaria humilde, apesar das grandes graças recebidas e dos notáveis sucessos obtidos na tarefa de evangelização. Como sugere São Jerônimo, a moléstia terá desempenhado junto a S. Paulo o papel do escravo que costumava acompanhar o triunfante romano, repetindo-lhe: «Hominem te esse memento. — Lembra-te de que és homem» (cf. S. Jerônimo, epíst. XXXIX 2).

É bem possível que a crise mencionada em Gál 4 não tenha sido senão uma das manifestações do estado patológico habitual do santo pregador. Mais ainda: talvez se deva explicar de modo semelhante o misterioso obstáculo mediante o qual Satanás por duas vezes impediu São Paulo de ir a Tessalonica (cf. 1 Tes 2,18).

Eis o que com verossimilhança se pode dizer a respeito da moléstia do Apóstolo São Paulo… De novo, sobriedade e reserva se recomendam na explanação do assunto.

1 comentário
  1. Miguel Diz

    Pode ser doença crónica mas tem episódios agudos, que obrigam o doente ao cuidado de terceiros durante alguns dias. O apóstolo devia ter grande desgaste músculo-esquelético das muitas viagens feitas a pé (como judeu da Diáspora, já as fazia em novo, mesmo antes das 4 grandes viagens ditas “apostólicas”). Eu apostaria numa lesão entre L5 e S1, compressão do nervo ciático, que nas crises agudas pica como um aguilhão na carne e origina contorções e convulsões aprecia´veis (murros de Satanás).

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