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Quem é o autor da Epístola aos Hebreus?

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A exegese contemporânea, mesmo católica, baseando-se em sólidos argumentos, nega quase unanimemente a tese, tão comum até os últimos tempos, de que São Paulo tenha escrito a epístola aos Hebreus. A esta negativa nada se pode opor por parte da fé, pois, em qualquer hipótese, se continua a afirmar que a citada epístola é a Palavra de Deus e pertence ao cânon ou catálogo das Escrituras Sagradas.

É preciso distinguir nitidamente entre inspiração ou canonicidade de determinado escrito e autor humano do mesmo. A inspiração é carisma ou graça que Deus pode outorgar a qualquer de seus servos.

Geralmente estamos habilitados, por indícios diversos, a indicar o nome do servo de Deus ou do autor humano do qual o Espírito Santo se quis servir para produzir determinado escrito bíblico. Há casos, porém, em que pairam dúvidas, mesmo insolúveis, a respeito da identidade desse autor (é o que se dá, por exemplo, com os autores dos livros dos Reis, das Crônicas, da Sabedoria, etc.). Tais dúvidas por si não afetam o valor inspirado ou canônico do respectivo livro bíblico; pode-se então estudar e discutir a questão do autor humano, sem que haja impiedade ou derrogação à fé, a menos que a Igreja se pronuncie oficialmente sobre o problema. — Ora tal é o caso da epístola aos Hebreus: embora a S. Igreja tenha definido a sua canonicidade ou índole inspirada, nunca definiu ter sido S. Paulo o seu redator. Por conseguinte, este segundo ponto fica entregue à livre pesquisa dos exegetas: assim como os medievais julgavam ter motivos para indicar S. Paulo, os modernos (com mais razão ainda) julgam dever negar esta posição.

A solução há de ser deduzida a partir de argumentos de crítica literária e de testemunhos da história; não se pode evocar alguma proposição de fé pró ou contra a autenticidade paulina de Hebreus.

Vamos, pois, em nossa explanação averiguar primeiramente em que consiste o problema da autoria de Hebreus; a seguir, procuraremos a solução que mais probabilidades reúne.

1. Os dados do problema

A questão do autor de Hebreus se apresenta assaz obscura; já nos primeiros séculos da nossa era havia opiniões diversas a tal propósito.

Enquanto os cristãos do Oriente atribuíam a epístola ao Apóstolo S. Paulo, os do Ocidente até meados do séc. IV se mostraram hesitantes a respeito, tendendo mesmo a negar a origem paulina de Hebr. Do séc. IV em diante, registrou-se entre todos unanimidade em afirmar que S. Paulo era o autor de Hebr. Nos últimos decênios, porém, os exegetas têm de novo focalizado o problema, sendo que os mais abalizados negam tenha o Apóstolo redigido tal documento.

Vejamos de perto quais as razões evocadas na controvérsia.

A. Contra a origem paulina de Hebreus

1. Apresentam-se, antes do mais, razões de crítica literária, das quais as principais são as seguintes:

a) O autor de Hebr se distingue dos Apóstolos propriamente ditos, reconhecendo ter recebido a mensagem evangélica da parte dos que a ouviram diretamente de Cristo. Cf. Hebr 2,3 : «Anunciada primeiramente pelo Senhor, a salvação nos foi depois transmitida com toda a segurança por aqueles que a ouviram».

Obs: Usaremos a sigla Hebr para abreviar a designação «Epístola aos Hebreus».

Ao contrário, S. Paulo com muito ardor asseverava a sua missão de Apóstolo enviado diretamente por Cristo para pregar o Evangelho. Cf. Gal 1,1: «Paulo, constituído Apóstolo não pelos homens, nem por intermédio de algum homem, mas por Jesus Cristo…»; Gal 1,12: «Não foi de algum homem que recebi ou aprendi o Evangelho; foi-me revelado por Jesus Cristo».

Ora as duas posições parecem irredutíveis uma à outra.

Isto é confirmado pela referência que o autor de Hebr faz aos chefes da comunidade de seus leitores: «Lembrai-vos de vossos dirigentes, que vos pregaram a palavra de Deus. Considerai qual foi o fim de sua vida, e imitai-lhes a fé» (Hebr 13,7). São Paulo não teria escrito tais palavras, pois ele mesmo era dirigente de comunidades e exercia ciosamente as suas funções.

b) Hebr carece do exórdio habitual nas epístolas paulinas, em que o Apóstolo se apresenta aos leitores e os saúda. Donde concluem alguns exegetas que tal documento não é uma epístola, mas um tratado teológico, ao qual foi acrescentado posteriormente um epílogo ou fecho de epístola (cf. 13,18-25).

c) O vocabulário de Hebr difere assaz do dos genuínos escritos de S. Paulo. De fato, dentre as 992 palavras que constituem o léxico de Hebr, 292 não se encontram nas autênticas epístolas paulinas; a ausência de alguns desses vocábulos no «corpo de escritos paulinos» vem a ser particularmente estranha (assim as palavras «to hagion», santuário, que ocorre 10 vezes em Hebr; «hiereus», sacerdote, que aparece 14 vezes em Hebr; «archiiereus», Sumo Sacerdote, 17 vezes em Hebr…).

Doutro lado, pergunta-se: porque faltam em Hebr certos termos tão característicos de S. Paulo? Tais seriam: «apokalypsis», revelação, e «apokalypto», revelar, 27 vezes ocorrentes em S. Paulo; «gnosis», conhecimento, 23 vezes em S. Paulo; «gnosis», conhecimento, 23 vezes em S. Paulo; «dikaioo», justificar, 26 vezes em S. Paulo; «ethnos», povo, 53 vezes em S. Paulo ; «evangelion», evangelho, 69 vezes em S. Paulo.

d) O estilo de Hebr é literário e mesmo clássico, o mais esmerado que ocorra no Novo Testamento; caracteriza-se pela harmonia e pelo ritmo fluente (cf. 1,1-4; 2,2-4. 14-18; 7,20-25), ao passo que o estilo de S. Paulo é o de uma eloquência ardente, cujas frases são não raro cortadas bruscamente, ficando incompletas; apelos ardentes, afetividade vibrante assim se manifestam (cf. Rom 1,1-7; 2,17-21; 5,12s).

e) O modo de citar a S. Escritura em Hebr também diverge do que é habitual em S. Paulo. — S. Paulo muitas vezes nomeia o autor do livro que ele cita («Moisés diz…», Rom 10,19 ; «Davi diz…», Rom 4,6 ; «Isaias diz…», Rom 10,16); caso não indique nome, o Apóstolo recorre a fórmulas clássicas («como está escrito, diz a Escritura, diz a Lei» ou simplesmente «está escrito…»). Ao contrário, o autor de Hebr refere-se diretamente a Deus ou ao Espírito Santo (cf. 2,12.13; 3,7; 4,4; 7,17; 10,5.15).

f) No terreno doutrinário propriamente dito, notam-se pontos de vista diversos em S. Paulo e em Hebr (o que não quer dizer: oposições ou contradições).

Assim, ao considerar a Lei de Moisés ou as disposições do Antigo Testamento, S. Paulo focaliza principalmente o aspecto moral da Lei: esta era excelente, mas não podia santificar o homem porque a natureza humana era fraca, ainda carecente da graça do Redentor; em consequência, o papel da Lei foi o de excitar nos judeus a consciência de sua incapacidade para irem a Deus e, consequentemente, o desejo do Redentor. — A epístola aos Hebreus focaliza de preferência o aspecto ritual da Lei: apresenta-a, sim, como um código de oblações e cerimônias que figuravam o sacrifício de Cristo, preparando assim os homens a receber o Redentor.

Além disto, nota-se que S.. Paulo concentra todo o seu ensinamento em torno da doutrina de Jesus Cristo crucificado e ressuscitado; tem sempre ante os olhos o sacrifício oferecido na cruz (cf. Gal 3,1). — A epístola aos Hebreus, porém, prefere contemplar Jesus assentado à direita de Deus Pai, sempre intercedendo por nós, após a vitória obtida na terra. Em consequência, os leitores de Hebr são convidados a levantar os corações para Cristo Sumo Sacerdote, que oficia no céu; S. Paulo põe, antes, ênfase no fato de que o cristão vive em Cristo e Cristo vive no cristão (é este um outro aspecto do mistério de Cristo e da Igreja).

2. Além das razões de crítica interna acima recenseadas, fala contra a origem paulina de Hebr o depoimento de autores cristãos ocidentais dos primeiros séculos.

De fato. Até fins do séc. IV, não poucos escritores citavam a epístola aos Hebreus como documento sagrado, canônico, mas mostravam-se incertos a respeito do redator, atribuindo-a não raro a S. Barnabé. Assim S. Ireneu (séc. II), S. Hipólito de Roma (+235), Tertuliano (+ depois de 220), S. Gregório de Elvira (+ depois de 392).

Outros escritores chegavam a negar a índole inspirada ou canônica de Hebr, posição esta que se explica em consequência de uma situação transitória provocada por certa heresia dos séculos II/III. Com efeito, os Montanistas e Novacianos, por essa época, negavam a remissibilidade de certos pecados graves, apelando abusivamente para Hebr 6,4-8, como se a Sagrada Escritura mesma ensinasse não haver perdão para determinadas culpas. Visando então tirar o valor ao argumento de tais rigoristas, alguns mestres e pregadores puseram em dúvida a autoridade de Hebr, enumerando por vezes este documento entre os escritos apócrifos ou não bíblicos.

Assim fizeram Caio Romano (inicio do séc. III), S. Cipriano (+ 258), S. Optato de Milevo (cerca de 370-375), o autor do fragmento Muratoriano (catálogo bíblico do séc. II) e o do Cânon Mommseniano (em 360 aproximadamente). Contemporaneamente, porém, não deixavam de se fazer ouvir vozes que reconheciam a índole canônica ou inspirada de Hebr, embora não soubessem exatamente qual o respectivo autor humano.

S. Jerônimo, ainda no início do séc. IV, aludia a Hebr nos seguintes termos: «Entre os romanos até nossos dias não é tida como carta do Apóstolo Paulo». S. Agostinho, a partir de 409 até o fim da vida (430), citava, sim, Hebr como escrito canônico ou inspirado, mas não a apresentava como obra de S. Paulo.

Desde meados do séc. IV, à medida que se esvanecia o perigo do rigorismo herético, foi prevalecendo no Ocidente a persuasão de que Hebr pertence ao catálogo sagrado. Em consequência, os concílios de Hipona (393) e de Cartago I (397) a enumeraram entre os escritos bíblicos, afirmando assim uma posição que se tornou unânime em toda a S. Igreja. Quanto à autoria paulina da epístola, ela foi sendo mais e mais professada pelos latinos a partir do séc. IV, de modo a ser comumente admitida nos séculos seguintes até os últimos tempos.

Eis as principais razões que levam bons exegetas católicos modernos a controverter a origem paulina (não o valor bíblico ou inspirado) de Hebr.

Contudo ainda há os que defendem ter S. Paulo escrito tal carta. Recorrem aos argumentos abaixo:

B. Em favor da origem paulina de Hebr.

1. Principalmente razões históricas ou os testemunhos dos escritores do Oriente são aqui evocados.

Desde remota época, houve escritores cristãos orientais que atribuíram a S. Paulo a epístola aos Hebreus, embora não faltasse simultaneamente quem (como no Ocidente) duvidasse dessa tese. Basta nomear entre outros, o «bem-aventurado presbítero» do séc. II (Panteno de Alexandria?), cujo testemunho é assim transmitido por Clemente de Alexandria: «Já que o Senhor (Jesus), Apóstolo de Deus todo-poderoso (cf. Hebr 3,1), fôra enviado aos Hebreus, Paulo, em virtude da sua modéstia, e por ter sido enviado aos gentios, não se apresentou no cabeçalho da epístola como Apóstolo dos Hebreus» (testemunho consignado por Eusébio, Hist. ecles. 6, 14, 2ss ed. Migne gr. 20, 549. 552).

Clemente de Alexandria (+ antes de 215), segundo Eusébio (1. c.), «afirmava ter S. Paulo escrito a epístola aos Hebreus, mas em idioma hebraico, visto que se dirigia primariamente aos hebreus; Lucas teria zelosamente traduzido para o grego».

Como se vê, também Clemente não nutre dúvida sobre a origem paulina de Hebr, mas mostra-se consciente do problema dessa carta.

Não é necessário nos detenhamos no enunciado dos diversos nomes que favorecem a tese da autenticidade.

2. Razões literárias ou de crítica interna também são aduzidas para demonstrar a origem paulina de Hebr. Apesar das diferenças, há, sem dúvida, semelhanças de doutrina e vocabulário entre Hebr e as epístolas de S. Paulo. Contudo essas semelhanças perdem algo da sua força de argumento no nosso problema, desde que se leve em conta a grande influência que em geral as treze genuínas epístolas de S. Paulo devem ter exercido sobre o pensamento e o vocabulário de qualquer dos escritores cristãos contemporâneos e subsequentes ao Apóstolo. «As iniciativas e a autoridade de Paulo são tais que não se poderia conceber uma epístola posterior, dotada de certa envergadura, que não lhe devesse grande parte de seus conceitos e não se exprimisse em termos análogos… Depois do ano de 64, ninguém podia mais falar de Cristo, da fé, da salvação, etc., sem se referir ao menos implicitamente ao que Paulo escrevera sobre tais assuntos» (C. Spicq, L’Epitre aux hébreux I. Paris 1952, 144).

Os exegetas, porém, assinalam alguns pormenores de pensamento e de linguagem particularmente significativos, dentre os quais se podem citar os seguintes:

– Cristo é descrito como irmão dos homens (Hebr 2,11; Rom 8, 29);

– obediente até a morte (Hebr 5,8; Rom 5,19; 2 Cor 10,5; FIp 2,8);

– Jesus não quis agradar a Si mesmo (Rom 15, 3; 2 Cor 8,9), abraçando consequentemente o sofrimento e a morte (Hebr 12, 1-3).

– o êxodo dos israelitas que saíram do Egito, mas não puderam entrar na Terra Prometida por causa da sua infidelidade, é explanado no mesmo sentido em Hebr 3,7s e 1 Cor 10,1-13. «Todas essas coisas lhes aconteciam para servir de exemplo e foram escritas para nossa orientação» (1 Cor 10,11).

– as montanhas do Sinai e de Sião (Jerusalém) correspondem antiteticamente uma à outra (Hebr 12,18-22; Gál 4,24-26).

– a Lei de Moisés era insuficiente para reconciliar os homens com Deus (Hebr 10,1-4; Rom 3,20; 5,20; Gál 3,19). Em consequência, foi ab-rogada por Cristo (Hebr 10,4-7; Rom 10,4).

Que se poderia concluir de tais semelhanças ? .

É o que se verá no parágrafo abaixo.

2. A solução mais provável

Considerando os pontos de contato entre Hebr e S. Paulo, bons exegetas modernos concluem que a epístola aos Hebreus, assim concebida, deve ser tida como evolução homogênea e complemento do epistolário paulino. De um lado, ficam sendo inegáveis as divergências acidentais (não essenciais) já apontadas; em consequência julgam os críticos que o redator de Hebr não pode ser identificado com o Apóstolo S. Paulo. De outro lado, esse redator se mostra tão familiarizado com a mensagem do grande Apóstolo que a própria crítica é induzida a procurá-lo no circulo dos discípulos de S. Paulo.

«A análise desses pontos de afinidade não prova em absoluto que um só autor tenha escrito Hebr e o epistolário paulino, nem prova que, de dois autores, um tenha copiado os escritos do outro. O problema é muito mais complexo, dadas as divergências de vocabulário que acima realçamos. O que se pode concluir, é que o redator da epístola aos Hebreus conhecia muito bem os escritos de S. Paulo; lera-os muitas vezes, e deles se nutrira. Isto nos leva a crer que tenha sido um discípulo do Apóstolo» (E. Jacquier, Históire des livres du Nouveau Testáment I. Paris 1908, 465).

Tais considerações e a conclusão que delas decorre são bem plausíveis; merecem preferência sobre a tese que atribui, sem mais, a origem de Hebr ao Apóstolo S. Paulo. Em outros termos, a mesma sentença pode ser assim enunciada: o Apóstolo S. Paulo é o autor (no sentido de «principal fonte da doutrina e dos conceitos») da epístola; um discípulo, porém, do grande Apóstolo terá sido o redator desse documento, dando-lhe não somente o seu estilo e o seu vocabulário próprios, mas também os traços característicos da sua formação e mentalidade.

O redator de Hebr não foi, portanto,, um mero secretário ou, como  se diria na linguagem moderna, um datilógrafo de S. Paulo. Devia ter personalidade intelectual e religiosa muito acentuada. Era um pensador que, mesmo ao sofrer influências do seu ambiente, guardou a autonomia de pensamento e expressão, apresentando assim algo de genial e contribuindo para enriquecer a teologia do Novo Testamento. Em particular, julga-se que deve ter sido um judeu — dado que conhecia muito bem as Escrituras do Antigo Testamento — e um judeu de Alexandria no Egito, pois nesta cidade desde o fim da era pré-cristã se constituíra uma escola judaica de exegese que, usando de estilo grego assaz elegante, tendia a desenvolver o sentido místico ou tipológico dos livros do Antigo Testamento (como faz o redator de Hebr). Dessa escola, o principal representante foi o israelita Filo de Alexandria.

A esta altura, porém, impõe-se a elucidação de uma dúvida que poderia surgir do confronto da conclusão acima com ponderoso documento do magistério eclesiástico referente à origem de Hebr.

3. E as declarações da Pontifícia Comissão Bíblica ?

Aos 24 de junho de 1914, a Pontifícia Comissão Bíblica (a qual não goza do carisma da infalibilidade) respondia a três perguntas que lhe foram feitas a respeito da epístola aos Hebreus. Tais declarações são, por vezes, interpretadas em sentido demasiado estrito como se vedassem qualquer discussão crítica concernente à origem de Hebr. Errônea seria esta conclusão. — Eis o que se depreende de uma análise fiel das decisões da P. Comissão:

1) As dúvidas e controvérsias verificadas nos primeiros séculos a propósito da canonicidade e autenticidade de Hebr não constituem argumento suficiente para que não se enumere tal documento no catálogo das cartas paulinas. A epístola aos Hebreus é, pois, um documento canônico, bíblico, cujo lugar adequado no cânon sagrado é o «corpo dos escritos apostólicos».

2) As razões literárias ou de crítica interna de Hebr não bastam por si para que se negue a influência do Apóstolo S. Paulo na confecção desta carta, Há mesmo, entre os escritos paulinos e Hebr, afinidade tal que se deve admitir a mesma fonte ou a mesma origem para todos esses documentos. Contudo essa identidade de fonte ou origem não quer dizer que S. Paulo tenha dado a respectiva forma literária a Hebr, como se depreende do item abaixo:

3) É perfeitamente licito, salvo ulterior juízo do magistério da Igreja, atribuir a redação literária de Hebr a um escritor diverso do Apóstolo S. Paulo.

Assim, como se vê, a Pontifícia Comissão Bíblica admite, para Hebr, origem paulina em sentido largo ou, conforme dizem alguns, «autenticidade paulina indireta».

Resta aberta aos críticos a tarefa de identificar o redator de Hebr. O parágrafo abaixo tentará referir as sentenças dos exegetas contemporâneos mais abalizados no assunto

4. Quem terá sido o redator?

A resposta a este quesito é tão obscura que muitos autores se abstêm de a procurar, desistindo portanto de aventar conjeturas sobre qualquer dos possíveis nomes de escritores antigos. O exegeta alemão A. Oepke chega a comparar o problema ao da «quadratura do círculo» (Das Neue Gottesvolk. Gütersloh 1950, pág. 17).

Dentre as várias respostas formuladas, destacaremos apenas as que se seguem:

a) Uma das. hipóteses mais antigas indica S. Clemente, bispo de Roma em fins do séc. I.

Este autor deixou uma carta genuinamente sua, escrita aos Coríntios. Ora o confronto desta missiva com a epístola aos Hebreus resulta em desabono da hipótese: Clemente não possui a genialidade do autor de Hebr; cita e imita… mais do que aprofunda os temas. Ademais, se Clemente de Roma fosse o redator de Hebr, não se entende que justamente em Roma não houvesse conhecimento disto, como de fato não houve.

b) Outra teoria antiga aponta S. Lucas Evangelista. Este escritor reúne mais títulos de probabilidade do que o anterior: pertence, sim, à segunda geração apostólica; foi assíduo companheiro de S. Paulo; usa de estilo e vocabulário muito afins aos de Hebr; interessa-se pelo Templo e o culto em Jerusalém; considera Jesus especialmente como Salvador misericordioso, etc. — Contudo tais pontos de contato são superficiais: Lucas, no Evangelho e nos Atos, se revela um historiador atento aos fatos concretos; não é teólogo especulativo, ao passo que o autor de Hebr dá muito mais atenção às ideias do que aos fatos concretos. Sírio, e não israelita, convertido do helenismo paganizante, Lucas dificilmente teria podido assimilar o Antigo Testamento e experimentar a simpatia pela história e as instituições de Israel que transparece através de Hebr. A afinidade, portanto, vigente entre Hebr e os escritos de S. Lucas se deve ao fato de que todos esses documentos dependem da catequese paulina.

c) Goza de certa autoridade a sentença que atribui à redação de Hebr a S. Barnabé. Professam-na escritores antigos desde Tertuliano assim como a maioria dos exegetas contemporâneos. Vários títulos recomendam tal tese: Barnabé pertenceu, sim, à segunda geração cristã, como uma das figuras mais eminentes da época dos Apóstolos. Era de raça judaica, oriundo da diáspora helenista, ou seja, da ilha de Cipro; falava o grego desde a infância; pode muito bem ter sido formado em Alexandria, já que frequentes eram as relações entre Cipro e o porto de Alexandria. Acompanhou S. Paulo no apostolado em Antioquia e na primeira viagem missionária. Além disto, era levita e, por isto, ótimo conhecedor dos ritos e dos costumes dos israelitas.

Contudo também esta sentença apresenta seus pontos obscuros:

Sabe-se que Barnabé se separou de S. Paulo no inicio da segunda viagem missionária (por volta do ano de 50; cf. At 15,36-39); não se tem notícia de que haja voltado para perto do Apóstolo. Ora a epístola aos Hebreus parece ter sido redigida pouco antes do ano de 70; em Antioquia Barnabé fez concessões às observâncias judaicas (cf. Gal 2,13), mostrando assim estranha independência em relação a S. Paulo; conforme Gál 2,9 e At 11,22-24, S. Barnabé se  entregou ao apostolado entre os gentios; não pertenciam, portanto, ao temário de sua pregação habitual os assuntos abordados em Hebr (daí estranhar-se tivesse escrito tal epístola); em Licaônia usaram da palavra Paulo e Barnabé, de tal modo que o povo, impressionado, identificou S. Paulo com o Deus da Palavra, Hermes (cf. At 14,12). Não seria isto indício de que Barnabé não possuía dons de eloquência, dons que se devem supor no redator de Hebr?

d) Alguns comentadores modernos, ao ler a epístola aos Hebreus, se lembram do diácono e primeiro mártir S. Estêvão, impressionados pelos traços de semelhança existentes entre Hebr e o sermão de S. Estêvão em At 7: ambos estes documentos percorrem a história de Israel para mostrar que, rejeitando Cristo, os judeus renegaram o seu passado e desviaram a linha de suas tradições, que os devia normalmente levar a Jesus Cristo como a seu complemento. O percurso, em ambos os casos, se detém nas mesmas etapas: Abraão, José, Moisés, Josué. Em ambos os documentas, lê-se até a tradição rabínica segundo a qual a Lei foi transmitida a Moisés pelos anjos e o tabernáculo de Deus na terra foi construído à semelhança de um modelo celeste (cf. At  7, 38. 44 e Hebr 2,2; 8,5).

Todavia S. Estêvão morreu cedo demais (antes da conversão do próprio S. Paulo em 36) para poder ser tido como autor de Hebr. Dos pontas de contato indicados apenas se pode concluir que a apologia de S. Estêvão perante o Sinédrio se tornou fonte básica da apologética paulina e cristã dos primeiros séculos; por conseguinte, terá exercido influência notável sobre Hebr.

e) Outras sentenças se têm feito ouvir, sem fundamento sólido, em favor do diácono Filipe, profeta, taumaturgo, evangelizador do Sul da Palestina (cf. At 21,8); …” em favor de Aristião, a quem se atribui o epilogo do Evangelho de S. Marcos (como se houvesse afinidade entre Hebr e Mc 16, 9-20); … em favor de Priscila e de seu marido Aquila, casai judeu muito chegado a S. Paulo…

f) Finalmente, depois de ponderadas todas as hipóteses dos exegetas, a mais plausível parece ser a que atribui Hebr a Apolo de Alexandria. Com efeito. A respeito deste personagem refere S. Lucas:

«Chegou a Éfeso um judeu chamado Apolo, natural de Alexandria, homem eloquente e muito versado nas Escrituras. Fôra instruído no que se refere ao caminho do Senhor, e, dotado de espírito ardoroso, falava e ensinava com exatidão a respeito de Jesus, embora só conhecesse o batismo de João. Começou a falar desassombradamente na sinagoga. Quando Priscila e Áquila o ouviram, levaram-no consigo e expuseram-lhe com exatidão o caminho do Senhor. Como desejasse dirigir-se à Acaia, os irmãos o animaram e escreveram aos discípulos de lá para que o recebessem. Chegando, prestou, pelo dom que possuía, grande serviço aos que tinham abraçado a fé, porque refutava vigorosamente os Judeus em público, demonstrando que Jesus é o Cristo» (At 18, 24-28).

Apolo era, pois, judeu e, por conseguinte, bom conhecedor das Escrituras e dos costumes de Israel. Mas também era helenista, muito versado na oratória grega e, em particular, na sabedoria de Alexandria, sua cidade natal. Ora estas duas características parecem marcar radicalmente o escritor de Hebr. Ademais era um apologista, arguto para discutir e para refutar os judeus, como também revela ser o redator de Hebr. Qual bom estilista e orador, Apolo (como faz justamente o redator de Hebr) devia evitar tudo que fosse expressão vulgar ou capaz de melindrar seus ouvintes e leitores:

Note-se como em Hebr 13,22 o autor sagrado, terminando a sua exortação, com delicadeza e urbanidade pede aos leitores que a recebam benevolamente. Para ele, a vida cristã é um estilo ou uma atitude de alma (13,5), que a graça de Deus torna bela (5,14; 10,24; 13,9.18). Dedica estima especial à honra e ao brio de caráter: assim incute a fidelidade à tradição venerável dos Pais, c.11,… a necessidade de nos tornarmos dignos da assembleia celeste, 12,22s, podendo a apostasia constituir um motivo de escândalo particularmente grave, 10,36-39.

Apoio deve ter gozado de grande autoridade e prestígio entre os primeiros cristãos, à semelhança do que se dava com o redator de Hebr; por isto, em Corinto alguns fiéis o queriam indevidamente fazer chefe de partido, assemelhando-o a Pedro e Paulo, colunas da Igreja (cf. 1 Cor 1,12; 3,4-6; 4,6); Apolo não tinha, pois, temperamento para ser mero secretário ou repetidor.

Vários outros pontos de contato se poderiam assinalar ; embora cada qual de per si pareça de pouca monta, o seu conjunto não deixa de ter força persuasiva. Por isto com boa probabilidade de acerto pode-se admitir tenha Apolo, de fato, sido o feliz e nobre redator de Hebr.

A título de complemento, diga-se que o autor sagrado deve ter tido em vista uma comunidade de judeus convertidos ao Cristianismo nos primeiros tempos mediante a pregação de S. Estêvão e exilados em virtude da perseguição que se seguiu ao martírio deste santo; deviam ter emigrado para o litoral da Síria e da Palestina (Cesaréia ou Antioquia?).

Eram antigos sacerdotes israelitas, que, com grande apreço, se recordavam das cerimônias que eles haviam celebrado no Templo de Jerusalém; como cristãos, participavam de um culto relativamente simples, ficando ademais sujeitos a maus tratos e ódio da parte de seus compatriotas. O contraste os afligia, de mais a mais que Cristo, retardando a sua segunda vinda, parecia haver esquecido os seus; daí o desânimo e as dúvidas de fé que os invadiam… Ora, para os corroborar na crença e na coragem é que o redator de Hebr lhes terá escrito a sua palavra de exortação (cf. 13, 22), impregnada de eloquência e entusiasmo: quis mostrar-lhes como o antigo culto israelita tendia, essencialmente a se consumar em Cristo; em consequência, era mesmo necessário que se entregassem à mensagem cristã e vivessem da fé, regime normal para todos os justos (cf. 10,38). — O lugar da redação terá sido a Itália, entre os anos de 65/67, ou seja, antes /da queda de Jerusalém, pois justamente o culto que se continuava a Celebrar na Cidade Santa ainda devia estar atraindo os destinatários de Hebr.

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