1 — Para julgar devidamente o problema, fixemos ràpidamente o sentido de Gên 3,15.
Após a aliança pecaminosa de Eva com a serpente no paraíso, o Senhor prometeu desfazer o pacto, estabelecendo inimizade entre a serpente e sua linhagem, de um lado ; a mulher e sua descendência, do outro lado.
Quem são propriamente esses antagonistas ?
No contexto de Gên 3, a serpente significa evidentemente o demônio. Por conseguinte, a linhagem da serpente vem a ser todos aqueles — homens e anjos maus — que se filiam ao Maligno, deixando-se influenciar por ele, para constituir o que S. Agostinho chama “a Cidade do Diabo”.
A esse partido se opõem a mulher e sua linhagem… A mulher (determinada por artigo, no texto hebraico), se se considera o contexto de Gên 3, é Eva, pois sòmente esta fazia parte da cena do paraíso (em todo o cap. 3 do Gên, a mulher é sempre Eva ; cf. w. 1.2.4.6.12. 13.16.17.20.21) ; Eva, por sua penitência, seria, para o futuro, antagonista do demônio. A posteridade da mulher inimiga do Maligno são consequentemente todos os homens bons, os que repelem as influências do demônio, constituindo “a Cidade de Deus”.
É esta a interpretação literal do texto. Ulterior reflexão, porém, leva a descobrir no mesmo um sentido ainda mais profundo : nem Eva nem os homens bons que dela descendem, realizaram e realizam, sem restrição, inimizade com o demônio, pois tanto a primeira mulher como o comum dos seus descendentes pecaram e pecam, apesar de suas intenções virtuosas. Apenas um homem e uma mulher foram sempre alheios ao Maligno, pois jamais conheceram a mancha de pecado, nem original nem atual: Cristo e Maria SSma. Em vista disto, conclui-se: no sentido literal imediato, o vaticínio de Gên 3,15 se refere a Eva e a todos os justos; no sentido pleno, porém, alude a Cristo e sua Mãe SSma. A profecia se cumpriu por excelência no Redentor e em Maria; ela se cumpre, em sentido menos perfeito, em Eva e em todos os homens bons, os quais sustentaram e sustentam a luta contra o Maligno, em virtude da pugna vitoriosa que Cristo e Maria sustentaram.
Os tradutores antigos do texto hebraico enveredaram por mais de uma interpretação: assim o texto grego dos LXX traz o pronome autós, masculino, em vez de autó (neutro que corresponderia a sperma, descendência); donde se vê que os tradutores gregos apontavam diretamente um varão, o Messias, como Esmagador da serpente. A tradução latina anterior a S. Jerônimo e o próprio S. Jerônimo (+420) em sua obra “Quaestiones hebraicae” usaram o pronome masculino ipse, segundo a praxe dos LXX; em numerosos manuscritos da Vulgata latina, porém, entrou a forma feminina ipsa, que prevaleceu, insinuando a pessoa de Maria SSma.
Esta última tradução é inadequada, mesmo errada, do ponto de vista filológico. Não contém, porém, erro teológico, podendo até ser explicada plausivelmente à luz da Teologia: de fato Maria, junto com seu Divino Filho (embora subordinadamente a Este), esmagou grandiosamente a cabeça da serpente, preservada como foi do pecado original (haja vista a explanação do sentido literal imediato e do sentido pleno acima proposta). Por isto é que o texto da Vulgata foi sendo transmitido tal como o confeccionou o tradutor; a Santa Igreja o respeitou, pois não contém heresia; nunca, porém, definiu Ser essa tradução a expressão autêntica do teor hebraico. Nota-se até que as traduções católicas modernas da Bíblia fazem ressaltar o pronome masculino Ele em Gên 3,15.
Compreende-se outrossim que os artistas latinos, lendo o Gênesis na tradução da Vulgata, o tenham ilustrado, representando a Virgem a esmagar a cabeça da serpente. A Sta. Igreja também aceitou esta expressão da fé cristã, pois ela é genuína, contanto que não se afirme ser a expressão da letra de Gên 3,15. É esta a razão de ser da praxe atual dos católicos.
Acontece, porém, que, consciente de que a tradução da Vulgata, embora não contenha heresia, é afetada de imperfeições filológicas, a Igreja pensa em publicar nova tradução latina da Bíblia Sagrada, tradução que corresponda fielmente ao texto original. Já saiu mesmo nova tradução latina do Saltério -ordenada por Pio XII.
Como se vê, a questão não versa em torno de erro teológico, mas em torno de uma falha linguística, que os antigos tradutores cometeram de boa fé e que os modernos vão removendo com clareza.
2 — Quanto à autenticidade e ao sentido de Mt 16,17-19 (primado de Pedro), veja “P.R.” 13/1959, qu. 2. Como reconhecem os críticos em geral, essa passagem não falta em manuscrito algum dos Evangelhos nem nas traduções e citações do texto sagrado feitas na antiguidade. Se o texto tivesse sido interpolado, haveria sido interpolado, sim, nos três Evangelhos sinóticos, e no mesmo contexto, quando na verdade ele só aparece em S. Mateus (cf. Mc 8,28-39 e Lc 9,20-27) ; o silêncio, pois, de Mc e Lc é sinal da autenticidade do texto.
Ademais, dado o apego dos antigos cristãos à tradição, teria sido impossível dar autoridade a um texto que houvesse sido tardiamente inserido nas Escrituras.