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O Espírito Santo, por Gualter de São Vítor

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“Adveio o fogo divino, não queimando, mas iluminando, não consumindo, mas brilhando. Encontrou os corações dos discípulos, receptáculos puros, e conferiu-lhes os dons dos carismas”. (Breviário Vitorino. Responsório de Pentecostes)

Deus, o Criador de todas as coisas, quando ordenou o céu, “fez dois luminares” (Gen. 1, 16), o Sol e a Lua, “o Sol para presidir ao dia, e a Lua, para presidir à noite”.

Estes dois luminares significam os dois Testamentos, o Velho e o Novo. O Velho é significado pela Lua, pois assim como a Lua foi dada para presidir à noite, assim também o Velho Testamento foi dado aos pecadores, que são noite e filhos da noite, trevas e filhos das trevas (I Tess. 5, 5), pelo que nos diz o Apóstolo:

“A lei não foi feita para os justos, mas para os pecadores”. I Tim. 1, 9

O Novo Testamento, porém, é significado pelo Sol, pois assim como o Sol foi dado para presidir ao dia, assim também o Novo Testamento foi dado aos justos, aos filhos da adoção, aos Apóstolos, aos discípulos de Cristo, que são dia e filhos do dia, luz e filhos da luz (I Tess. 5, 5). Ambos os Testamentos foram escritos pelo dedo de Deus, isto é, pelo Espírito do Deus vivo; o Velho, porém, foi escrito “em tábuas de pedra”, enquanto que o Novo foi escrito”nas tábuas de carne do coração”. 2 Cor. 3, 3

As tábuas de pedra significam a vontade dura e inflexível e a inteligência obtusa e insensível, que são as duas coisas em que consiste o interior do homem velho, não renovado pela Lei, pela qual os corações duros não se tornam brandos nem sensíveis. As tábuas de carne do coração significam a capacidade tanto de inteligir como de amar, devendo-se entender aqui por coração ao intelecto, e por carne ao afeto.

Nas Escrituras há uma outra passagem em que o Senhor fala mais abertamente sobre o modo como seria escrito o Novo Testamento, quando nos diz, por meio de Jeremias:

“Darei minhas leis nas suas mentes, e as escreverei nos seus corações”. Jr. 31, 33 Hb. 10, 16

Ele quer dizer que haveria de escrevê-las nas mentes pela inteligência e nos corações pelo amor; que haveria de escrevê-las pela inteligência contra a ignorância e pelo amor contra a concupiscência, pela inteligência que ilumina o cego e pelo amor que ajuda o enfermo.

No dia de hoje cumpriu-se esta promessa nos Apóstolos, quando o Espírito Santo, que é fogo invisível, apareceu em fogo visível para infundir o fogo do amor divino no coração de seus fiéis e iluminar suas mentes pelo esplendor do conhecimento de Deus. O Espírito Santo é o fogo do qual diz o Senhor:

“Vim enviar um fogo à terra, e o que desejo eu, senão que arda?” Luc. 12, 49

Ele é também o fogo que, segundo a Lei, deveria arder continua e perpetuamente no altar do Senhor, “o fogo perpétuo, que nunca faltará sobre o altar”, preceituado pelo Levítico (Lev. 6,13). O altar do Senhor é o coração do fiel; trata-se, portanto, do fogo a que nos referíamos no início, quando nossa sentença nos dizia:

“Adveio o fogo divino, não queimando, mas iluminando, não consumindo, mas brilhando”, fogo verdadeiramente divino, porque é Deus, que não queima nem consome, mas brilha e ilumina. Brilha em si e de si, pelo que é, e não do que recebe, o que pode ser declarado ainda mais abertamente dizendo tratar-se de um fogo que brilha pela natureza, não pela graça.

Brilha pela natureza, ao contrário da criatura racional a qual, quando brilha, não o faz pelo que ela é, mas por receber uma luz que a faz brilhar. A criatura racional brilha, portanto, pela graça, não pela natureza. Tudo aquilo, porém, que brilha em si mesmo por natureza, é pela graça que ilumina os outros.

Existe ainda um outro fogo que não é divino, mas maligno. Tal é o fogo da concupiscência, e assim é também o fogo da geena (Mt. 5, 22). Tanto o fogo da concupiscência como o fogo da geena têm em comum a propriedade de queimar; o fogo da concupiscência, porém, não apenas queima, como também consome. A concupiscência queima a natureza, e consome a graça. Estes dois fogos igualmente não brilham nem iluminam. Ambos são tenebrosos. O fogo da concupiscência possui trevas interiores e o da geena possui trevas exteriores.

Talvez alguém pergunte o que são trevas interiores e trevas exteriores. Deve-se saber que trevas nada mais são do que privação da luz. Há, porém, duas luzes, a luz interior e a luz exterior. A luz interior é o conhecimento da verdade que ilumina os olhos do homem interior, isto é, “os olhos do vosso coração”, (Ef. 1, 18) no dizer do Apóstolo. A privação desta luz são as trevas interiores, e padecem destas trevas aqueles nos quais arde o fogo da concupiscência. Estes, porém, ainda podem usar da luz visível, pois Deus, em sua bondade, “faz nascer o Sol sobre bons e maus, e faz chover sobre justos e injustos”. (Mt. 5, 45)

No futuro, porém, estes mesmos serão “lançados às trevas exteriores”, Mt. 8, 12

quando também serão privados desta luz visível da qual não são dignos. A privação desta luz exterior são as trevas exteriores.

Ao contrário destes dois fogos, porém, o fogo divino não queima nem consome, mas brilha e ilumina. No entanto, – dirá alguém -, porventura não diz o Apóstolo:

“Nosso Deus é um fogo devorador”? Hb. 12, 29

E, não obstante, acabamos de dizer que o fogo divino não consome nem devora. Como, portanto, ambas estas coisas podem ser simultaneamente verdadeiras, isto é, que consuma e não consuma? Não pode haver contradição na palavra da verdade.

Devemos dizer que o fogo divino, efetivamente, consome “os espinhos e os abrolhos”, Hb. 6, 8 isto é, os espinhos e os abrolhos dos vícios, e a ferrugem dos pecados, pois a caridade, conforme diz a Escritura,

“cobre a multidão dos pecados”. I Pe. 4, 8

O fogo divino, porém, não consome a natureza; ao contrário, purifica-a não somente da corrupção, como também da imperfeição do bem. E, purificada ilumina-a, e iluminando-a a plenifica, aperfeiçoa e consuma.

Nossa sentença, a seguir, nos diz que este fogo divino

“Encontrou os corações dos discípulos, receptáculos puros”.

“Os corações dos discípulos, receptáculos puros”, são receptáculos pela natureza da Criação, e puros pela graça da Redenção. Os corações humanos, os quais foram criados para que fossem capazes do conhecimento divino simultaneamente com o amor divino, são os mesmos corações que pelo pecado se tornaram repletos de malícia, de imundície e de ignorância. Foi por terem assim se tornado que nos foi enviado o Filho para que primeiro purificasse estes receptáculos, com o fim de que não se fizesse injúria ao Espírito Santo que depois haveria de vir. Posteriormente, de fato, foi-nos enviado também o Espírito Santo, para que plenificasse os receptáculos assim purificados. O Filho veio, portanto, para que efundisse amargura; o Espírito Santo, porém, para que infundisse doçura. O Filho veio para que removesse o que é antigo, o Espírito Santo para que concedesse o que é novo. O Filho, para que libertasse; o Espírito, para que beatificasse. O Pai, por conseguinte, criou estes receptáculos, o Filho os purificou, e o Espírito Santo os plenificou de bens.

Segue-se, então:

“E conferiu-lhes os dons dos carismas”.

Entre os dons dos carismas os principais são a palavra da sabedoria e a palavra da ciência, ou simplesmente a sabedoria e a ciência. A sabedoria é o conhecimento das coisas divinas, a ciência é o conhecimento das coisas humanas. A sabedoria é como o Sol, a ciência é como a Lua, pela qual somos instruídos sobre como nos devemos conduzir

“no meio de uma nação depravada e corrompida”. Fl. 2, 15

Caríssimos, esta nação depravada e corrompida de que nos fala o Apóstolo é a própria noite da vida presente, e a sabedoria que nela deve nos instruir é a piedade, uma palavra utilizada pelos latinos para traduzir o que os gregos denominam de `Theosebia’, isto é, culto de Deus. Cultuar a Deus significa unirmo-nos a Ele pela fé do conhecimento e pelo afeto do amor, de onde que é evidente que aqueles que conhecem a Deus mas não o amam não possuem a verdadeira sabedoria nem a verdadeira piedade, nem podem verdadeiramente cultuar a Deus, como aqueles de quem diz o Apóstolo:

“Embora conheçam a Deus, todavia não o glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças”. Rm. 1, 21

De modo semelhante, deve-se dizer também que aqueles que parecem amar a Deus mas não o conhecem, não cultuam verdadeiramente a Deus, dos quais noutro lugar diz igualmente o Apóstolo:

“Possuem o zelo de Deus, não porém, segundo a ciência”. Rm. 10, 2

O próprio nome sabedoria nos indica que ela contém em si mesma estas duas coisas, isto é, o conhecimento e o amor. A ciência, de fato, que não possui o tempero do amor divino não é saborosa, mas insípida. Incha, mas não edifica. É indigna, portanto, do nome de sabedoria. E, ademais, não é qualquer conhecimento que é dito sabedoria, mas apenas o conhecimento de Deus, e nem qualquer conhecimento de Deus, mas somente aquele que é possuído com amor. Somente este é corretamente chamado de sabedoria, isto é, saborosa ciência, pois, conforme no-lo ensina a Escritura,

“Deus é espírito, e aqueles que O adoram devem adorá-Lo em espírito e em verdade”. Jo. 4, 24

Devem adorá-Lo em verdade quanto ao conhecimento, e em espírito quanto ao amor. O conhecimento da verdade restaura em nós a imagem de Deus, enquanto que o amor restaura em nós a semelhança de Deus, pois o homem foi criado à semelhança e imagem de Deus por ter sido feito participante do amor e do conhecimento de Deus.

Em todos os membros de Cristo, portanto, o Espírito Santo opera o conhecimento da verdade e o amor da virtude. Um só é o Corpo de Cristo, constituído de cabeça e membros. Cristo é a cabeça, possuindo a plenitude da graça e da verdade (Jo. 1, 14); os membros são os cristãos, que recebem da plenitude da cabeça (Jo. 1, 16). O Espírito de Cristo não habita senão no Corpo de Cristo, mas na cabeça segundo a plenitude e nos membros segundo a participação. Neste corpo, por conseguinte, nada está morto; fora dele nada está vivo. Aquele que, de fato,

“não possui o Espírito de Cristo, este não é dEle”, Rm. 8, 9

isto é, não é seu membro. Somente aqueles, porém, “que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus, templos do Espírito Santo, herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo”, Rm. 8, 14-17 I Cor. 6, 19

os quais desprezam o mundo e repousam na esperança da herança eterna, de quem nos fala o profeta, quando diz:

“Se dormes entre os apriscos”, Salmo 67, 14

isto é, entre duas heranças, entre dois Testamentos, entre a promessa do Novo Testamento e a promessa do Velho Testamento. A promessa do Velho Testamento são os bens temporais, os bens caducos pertencentes ao homem velho; a promessa do Novo Testamento são os bens eternos, a vida eterna. “Dormir entre dois apriscos” significa, portanto, repousar entre o desprezo do mundo e o amor e o desejo dos bens eternos; somente estes que desprezam o mundo e anelam pelos bens invisíveis são os que guardam o sábado da mente.

O que, de fato, significa aquela mulher que no Apocalipse o Apóstolo João viu

“vestida de Sol e tendo a Lua sob os pés”? Ap. 12, 1

Esta mulher é a esposa do Cordeiro, que antes do advento do Espírito Santo estava coberta pelo véu da ignorância, mas que agora, depois do advento do Espírito Santo e da infusão de sua graça, está vestida de Sol, isto é, de uma clara luz, para que

“vendo como num espelho a glória do Senhor, sejamos transformados na mesma imagem, de claridade em claridade, como pelo Espírito do Senhor”, 2 Cor. 3, 18

e assim possamos, pelos olhos do homem interior, apreender o Sol da justiça, o esplendor da glória e o candor da luz eterna. Onde, de fato,

“está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade”, 2 Cor. 3, 17

a liberdade tanto de conhecer, como de amar.

Esta mulher tem a Lua “debaixo de seus pés” (Ap. 12, 1). A Lua significa as coisas temporais, mutáveis e caducas, as quais a alma que verdadeiramente ama a Deus despreza, rejeita, conculca e considera como esterco. É assim que no Cântico dos Cânticos, radiante de alegria, a esposa canta:

“A sua mão esquerda está debaixo de minha cabeça, e a sua destra me abraça”. Ct. 2, 6

Neste lugar, aquilo que João entendeu como sendo o Sol, Salomão o entendeu pela destra; e o que João entendeu pela Lua, Salomão o entendeu como sendo a mão esquerda. Quanto ao que João entendeu pelos pés, pode-se dizer que Salomão o entendeu pela cabeça, não sendo inconveniente que coisas diversas tenham a mesma significação segundo uma propriedade comum, assim como de um mesmo símbolo, segundo diversas propriedades, possam originar-se diferentes significações.

Pode-se entender também que a cabeça designa a razão, enquanto que os pés designam o afeto. Segundo este modo de entender, há alguns que pelo julgamento da razão desprezam o mundo, estando porém unidos a ele por alguma afeição; estes são aqueles que têm a mão direita debaixo da cabeça, mas ainda não têm a Lua debaixo dos pés. Há também outros que não desprezam o mundo somente pelo julgamento da razão, mas que também não estão unidos a ele por nenhum afeto; estes não somente têm a mão esquerda debaixo da cabeça, como também a Lua debaixo dos pés. São aqueles que pela obra do Espírito Santo “dormem entre os apriscos”, repousam entre os montes (Salmo 103, 10) e se gloriam na esperança dos filhos de Deus (Rm. 5, 2), não no falar da vaidade, mas na esperança da eternidade, assim como aquele que diz:

“Somente tu, Senhor, me constituístes na esperança”. Salmo 4, 10

Estes são ainda os filhos de Sião, que exultam no seu rei (Salmo 149, 2), aqueles que com ouro, prata e pedras preciosas edificam sobre o fundamento que é Cristo (1 Cor 3, 11-12), que não amam nada contra Deus e, mais ainda, nada amam além de Deus. Nada amam além de Deus, pois aqueles que amam o mundo não possuem o Espírito de Deus. A própria Escritura nos diz que o Espírito Santo é

“Aquele que o mundo não pode receber”. Jo. 14, 17

Os que amam o mundo são aqueles que foram expulsos da face de Deus e, nesta condição, se tornaram, como Caim, “andarilhos e fugitivos”. Gen. 4, 14

São homens andarilhos de si mesmos e fugitivos de Deus, andarilhos pela imoderada concupiscência e fugitivos pela consciência pecadora. São aqueles homens que se gloriam em sua própria confusão, não interiormente no coração, mas externamente, em sua própria fisionomia; não no testemunho da própria consciência, mas no louvor dos homens.

Caríssimos, o profeta nos adverte e nos lembra que o Senhor “dispersa os ossos dos que agradam aos homens” (Salmo 52, 6) enquanto que os que possuem o Espírito de Deus “dormem entre os apriscos”, possuindo em si a verdadeira paz. Aquele que neles habita os conduzirá da paz da alma à paz de Deus, da paz interna à paz eterna, à verdadeira paz, à paz em si mesmo (Salmo 4, 9), à paz que supera todo o sentido (Fl. 4, 7), ao poço da saciedade, à fonte da vida, à água do refrigério, ao paraíso das delícias, à afluência de todos os gozos, à plenitude das alegrias, aos bens “que o olho não viu, nem o ouvido ouviu” (1 Cor. 2, 9), ao maná escondido, à luz do Pai, à claridade super principal, à contemplação da Suma Trindade em toda a verdade, à glória sempiterna.

Que a ela nos conduza o Deus trino e uno.

Amén.

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