Em síntese: O Jesus Seminar, congregando 74 peritos norte-americanos, chegou à conclusão de que somente 18% dos dizeres atribuídos a Jesus nos Evangelhos são autênticas palavras do Senhor; as demais sentenças da coleção de mais de 1.500 sentenças encontradas nos Evangelhos seriam concepções das antigas comunidades cristãs.
A propósito pode-se notar que
1) os peritos norte-americanos se deixaram muitas vezes inspirar por hipóteses, probabilidades e preconceitos subjetivos ou dogmaticamente estabelecidos sem fundamento objetivo. O racionalismo os moveu fortemente em seus estudos;
2) existem pesquisas de outros críticos protestantes (também estes) que preferem ver nos Evangelhos o eco da pregação dos rabinos. A imagem de Jesus, mestre a instruir seus discípulos, está muito viva nos Evangelhos. Estes escritos parecem ser o eco fiel do pensamento de Jesus, podendo por vezes perceber-se ipsissima verba (as próprias palavras) de Jesus. Tal é a conclusão da escola escandinava (Riesenfeld, Gerhardson e colegas);
3) além disto, tentou-se fazer a tradução do Evangelho grego para o aramaico — o que surpreendeu os tradutores, pois averiguaram que o texto grego parece corresponder a um discurso aramaico, cuja sintaxe e linguagem estão no linguajar do texto grego.
Donde se vê que é preconcebida a tese de que somente 18% dos dizeres atribuídos a Jesus são autênticos. A Igreja, baseada em boas razões de ordem histórica, professa a fidelidade dos Evangelhos.
Foi publicada nos Estados Unidos a obra “The Five Gospels. The Search for the Authentic Words of Jesus” ([1]), devida a Robert W. Funk, Roy W. Hoover e THE JESUS SEMINAR (um conjunto de 74 peritos). Tal obra, já comentada na base de notícia da revista VEJA em PR 384/ 1994, pp. 216-224, chega à conclusão de que somente 18% dos dizeres de Jesus nos Evangelhos são autênticos. — É a este estudo que dedicaremos as páginas seguintes, acrescentando dados novos aos que já foram apresentados PR 384, pois entrementes nos chegou às mãos a obra em seu original inglês.
1. Os Resultados do “Jesus Seminar”
A equipe de mais de setenta peritos trabalhou durante seis anos, comparando frase por frase de Jesus com paralelos bíblicos e extra-bíblicos. Chegou à conclusão de que nos Evangelhos Sinóticos existem
1) autênticas sentenças proferidas por Jesus (assinaladas com a cor vermelha),
2) sentenças que provavelmente se aproximam do que Jesus disse (cor lilás),
3) sentenças que Jesus não proferiu, mas cujo conteúdo está próximo do pensamento de Jesus (cor cinzenta),
4) sentenças que, de modo nenhum, provêm de Jesus, mas de uma tradição posterior a Jesus ou diferente do que Jesus ensinou (preto).
A primeira categoria compreenderia apenas 18% dos 1.500 ou mais dizeres atribuídos a Jesus. Os resultados eram obtidos por votação realizada após o estudo, em equipe, de cada sentença do Evangelho.
Muito interessante é que nenhuma das passagens que se referem aos pontos típicos da doutrina de Cristo ensinada pela Igreja Católica é tida como proveniente dos lábios de Jesus; seriam todas de tradição tardia ou diferente. Assim
a) os textos de Mt 16,17-19; Lc 22,31s; Jo 21,15-17, onde Jesus respectivamente promete o primado a Pedro e as chaves do Reino dos Céus, entrega a Pedro a missão de confirmar seus irmãos na fé e finalmente confia a Pedro o pastoreio de todo o rebanho de Cristo (cor preta);
b) as palavras da consagração da Eucaristia, em que Jesus afirma que o pão se torna seu corpo e o vinho seu sangue, são tidas como espúrias: Mt 26,26-29 (preto); Mc 14,22-25 (cinzento); Lc 22,15-22 (preto);
c) as palavras de Jesus que conferem aos Apóstolos o poder de perdoar ou não perdoar os pecados também são tidas como tardias ou de tradição diferente (cor preta): Jo 20,22s. Também o perdão outorgado por Jesus ao paralítico é tido como espúrio (preto): Mt 9,2-6 (é importante notar que o v. 6 diz que “Deus deu tal poder aos homens” ou o poder de perdoar pecados; compreende-se que tenha sido rejeitado, pois está fora de uso no protestantismo);
d) os dizeres de Jesus que proíbem o divórcio em Mc 10,1 Is; Lc 16, 18; Mt 5,23;19,9 não seriam oriundos do próprio Jesus (cor cinzenta);
e) as palavras finais de Jesus em Mt 28,18-20 também são tidas como espúrias (cor preta). E por quê? — Jesus provavelmente não tinha a intenção de lançar uma missão pelo mundo afora, e certamente não foi o fundador de uma instituição. As três partes do mandato — fazei discípulos, batizai e ensinai — constituem o programa adotado pelo movimento missionário da Igreja nascente, e não refletem instruções dadas por Jesus” (p. 270). Mais uma vez se vê que os autores refletiram na base do provavelmente ou da suposição assaz subjetiva e arbitrária, tendo sempre em vista negar a fundação da Igreja por parte de Jesus Cristo;
f) as palavras de Jesus em Mc 1,17 “Eu vos farei pescadores de homens” não seriam palavras de Jesus… Por quê? — Porque, segundo alguns estudiosos, Jesus não angariava discípulos; era um mestre itinerante que não tinha a intenção de criar uma instituição ou a Igreja que hoje conhecemos. Foram, portanto, os discípulos que atribuíram a Jesus estes dizeres para justificar a sua procura missionária de adeptos. Apenas a metáfora de pescar homens pode ser considerada palavra de Jesus; cf. p. 41. — Como se vê, os autores procedem na base de premissas preconcebidas ou de hipóteses gratuitas: são protestantes e, como tais, relativizam o valor da Igreja (esta, para os protestantes, é obra meramente humana, que cada reformador pode recomeçar a seu talante), de modo que de antemão negam que Jesus tenha dito algo que implique a fundação da Igreja-instituição. Tal é a razão também por que os membros do Jesus Seminar rejeitam a autenticidade de Mt 16,17-19; os preconceitos filosófico-religiosos estão muito presentes em tal trabalho;
g) Jesus não pode ter dito: “Completou-se o tempo. O Reino de Deus se aproxima. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). — Por que não o pode ter dito? Eis a explicação traduzida literalmente: “Nos Evangelhos Jesus aparece raramente a convocar o povo para o arrependimento. Tal exortação é característica de João Batista (Mt 3,7-12; Lc 3,7-14). Como a visão apocalíptica da história, o apelo ao arrependimento bem pode ter sido derivado de João Batista e atribuído a Jesus” (p.41).
Pergunta-se, porém: por que Jesus não pode ter chamado os homens à penitência? Pelo fato de que João Batista os chamou, Jesus não pode ter apregoado o mesmo apelo, ainda com mais ênfase???
Entende-se desta maneira que os resultados a que chegam os membros do Jesus Seminar sejam extremamente pobres para se reconstituir a figura de Jesus histórico. Os autores julgam que à imagem real de Jesus foi sobreposta a de uma figura mítica e celeste, figura esta que o Apóstolo Paulo tomou das religiões helenistas de mistérios. É impressionante o tom dogmático ou definitório utilizado pelos scholars do Seminar, na base de preconceitos ou de concepções formadas de antemão; em virtude do racionalismo negam que Jesus tenha dito tal ou tal sentença.
Diante destes resultados da pesquisa, pode-se, de imediato, ponderar o seguinte: a dependência dos Evangelhos em relação à cultura pagã helenística já foi tese de certa autoridade entre os críticos. Atualmente, porém, está de certo modo superada, tendo-se em vista especialmente os manuscritos judaicos de Qumran e, mais, os estudos da escola de críticos (protestantes) suecos, que enfatizam as raízes hebraicas do Evangelho e mostram a continuidade entre o Jesus histórico e o Jesus documentado pelos Evangelhos. É o que passamos a examinar.
2. O Fundo Semita (Hebraico-aramaico) dos Evangelhos
2.1. Métodos e Locuções Rabínicas
A exegese contemporânea dos Evangelhos tem chamado a atenção para a “hebraicidade” de Jesus e de seu círculo de discípulos. Por exemplo, Rudolf Bultmann, que é um dos críticos mais radicais e contestatórios, afirma que Jesus não era cristão, mas hebreu, inteiramente mergulhado na tradição de Israel.
Na verdade, o Cristianismo nasceu no bojo do judaísmo. Daí a conveniência de procurar entender o Cristianismo a partir da tradição judaica, muito mais do que à luz do helenismo.
Esta tarefa foi realizada especialmente por dois estudiosos suecos: H. Riesenfeld ([2]) e seu discípulo B. Gerhardson,([3]) mestres da chamada “Escola Escandinava”.
Estes dois autores afirmam que os Evangelhos não nos referem apenas aquilo que as antigas comunidades cristãs pensavam, mas, sim, o pensamento do próprio Jesus. Eis como raciocina Riesenfeld:
Os judeus eram muito ciosos de transmitir as palavras recebidas dos mais velhos; remontavam, de geração em geração, até a revelação feita por Javé a Moisés no monte Sinai; os vocábulos utilizados para designar essa transmissão eram masar (entregar) e gibbel (receber). Ora precisamente nesse ambiente de tradição oral teve origem a transmissão do Evangelho, servindo-se da mesma terminologia: paradidonai (entregar) e paralambánein (receber); cf. 1Ts 4,1s; 1Cor 11,23-25…
A missão dos Apóstolos era tida como “um serviço da palavra” (At 6,4). Os Apóstolos eram “ministros da Palavra” (Lc 1,2), “testemunhas oculares desde o começo” (Lc 1,2), tendo convivido com Jesus (At 1,22). O Mestre cujas palavras eram transmitidas, era Jesus. Daí a explicação dada por Riesenfeld ao título do Evangelho de Marcos: “Começo do Evangelho de Jesus Cristo” significa “Início da Boa-Nova transmitida pelo próprio Jesus Cristo”. Numa palavra: a única explicação possível para o nascimento dos Evangelhos é a pessoa e o ensinamento do Mestre.
B. Gerhardson aprofundou as idéias de Riesenfeld. Estudou os processos de transmissão da Lei no judaísmo rabínico e comparou-os com o que o Novo Testamento dá a perceber. Assim nos meios rabínicos
— a conservação da Lei escrita se realizava por três vias: a) havia os escribas profissionais, cuja missão era garantir a pureza da tradição; b) havia o meio escolar, no qual o menino aprendia a ler e recitar a Lei; c) havia as sinagogas, nas quais a leitura pública contribuía para a fixação do texto;
— existiam oficiais dedicados à tarefa de transmitir a Palavra: os tannaim (repetidores), cuja função era ajudar a decorar a Lei ou também os dizeres (debarim) e os feitos dos grandes rabinos comentadores da Lei;
— para facilitar a memorização, utilizavam várias técnicas: palavras-chaves, fórmulas concisas (simanim), frases cantantes ou cadenciadas, a repetição em alta voz…([4])
Continua Gerhardson, observando que na formação dos Evangelhos encontramos vestígios de semelhante procedimento. Assim, por exemplo, São Lucas começa seu Evangelho com termos que refletem exatamente o método hebraico de transmissão oral dos ensinamentos dos mestres: “Muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós, como nô-los transmitiram os que foram testemunhas desde o início e tornaram-se mestres da Palavra” (Lc 1,1s). De resto, uma análise feita por computador demonstrou que Os termos “testemunho, testemunha e testemunhar” são dos mais freqüentes do Novo Testamento. O próprio São Paulo, embora fizesse questão de dizer ter recebido sua missão do Senhor (Gl 1,1), afirmava sua dependência da tradição (1Cor 15,3); como os rabinos, ele conservava as tradições dos Pais (Gl 1,13s; Fl 3,5s); foi confrontar seu Evangelho com o daqueles que eram tidos como “colunas” da Igreja (Gl 2,9).
Assim Gerhardson evidenciou que não se pode compreender o Cristianismo considerando apenas o que os antigos cristãos pensavam; insistia no retorno a Jesus, que, por sua vez, está inserido numa tradição judaica, à qual Ele dá nova orientação por suas palavras e suas obras. Jesus terá utilizado os processos dos rabinos do judaísmo.
A persistência da tradição oral com suas técnicas e seus métodos pode ser detectada nos escritos do Novo Testamento. Assim, por exemplo, o paralelismo das sentenças:
“Amai os vossos inimigos, orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44);
“Toda árvore boa dá bons frutos; mas a árvore má dá maus frutos” (Mt7,17);
“Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” (Mt 10,40).
“Ouvistes o que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo…” (Mt 5,21.27.31.33.38.43).
“Tu, quando deres esmola, orares, jejuares… não faças como os fariseus… Em verdade vos digo: já receberam sua recompensa. Tu, porém, quando deres esmola, orares, jejuares, … E teu Pai, que vê no segredo, te recompensará” (Mt 6,2-6).
As parábolas eram usuais entre os rabinos; foram utilizadas por Jesus porque naturalmente despertam curiosidade e podem favorecer a memorização, já que as imagens se impõem mais facilmente aos ouvintes.
Também se pode apontar o desenrolar do primeiro Concílio realizado em Jerusalém no ano de 49, segundo At 15,1-29: seguiu o método das academias rabínicas, em que havia discussão de um ponto de doutrina, troca de pareceres entre pessoas qualificadas, confronto das opiniões com a tradição guardada na memória ou em breves notas, recurso a precedentes e à Torá, decisão final tomada pelos chefes.
2.2. A tradução do Evangelho grego para o aramaico
Para comprovar a presença do patrimônio judaico e, por conseguinte, a continuidade entre judaísmo e Cristianismo, foi efetuada outra experiência, a saber: a tradução dos Evangelhos (escritos em grego) para o aramaico. Diz a propósito o Prof. Gianfranco Ravasi, eminente biblista italiano:
“Foi possível captar no aramaico os jogos fonéticos subjacentes, com os quais se favorecia a lembrança e se comprovava a fidelidade da transmissão dos conteúdos. A poesia e a prosa literária hebraicas, de fato, estão ligadas à sonoridade, isto é, ao amálgama harmônico dos sons dos vocábulos…, aos matizes das tonalidades, que se manifestavam sobretudo na recitação oral” (citado por V. Messori, Padeceu sob Pôncio Pilatos?, p. 295).
Vê-se assim que a rima dos vocábulos reaparece nas traduções feitas para o aramaico, que era a língua falada por Jesus e pelos Apóstolos. Observa ainda Gianfranco Ravasi:
“O rabi cristão, como seu colega judaico, levava o discípulo a decorar não só o texto central, mas também um seu comentário oficial. Por isto nos Evangelhos encontramos frases de Jesus comentadas por outras frases por ele pronunciadas, talvez em contextos diferentes, mas afins pelo conteúdo. Só um exemplo elementar: ao lado do Pai Nosso reportado por Mateus, temos o comentário de um dos seus pedidos principais: ‘E perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido… pois, se perdoardes aos outros as ofensas recebidas, também o Pai celeste vos perdoará. Mas, se não perdoardes uns aos outros, o Pai também não perdoará vossos pecados’ (Mt 6,12.14s)” (ib. p. 296).
Nesse comentário merece atenção ainda o paralelismo “Se perdoardes… se não perdoardes…”; tem função mnemônica, visando a facilitar a recordação das palavras de Jesus e do seu comentário oficial.
Em conclusão, escreve Gerhardson: “A própria raiz hebraica da árvore cristã fez com que a tradição evangélica, ligada ao rabino Jesus de Nazaré, ofereça uma sólida garantia de qualidade e fidelidade histórica nas palavras de Jesus e nas lembranças sobre Jesus” (ib. p.297).
É esta uma conclusão frontalmente contrária à do Jesus Seminar, que imagina nas primeiras comunidades cristãs uma proliferação fantasiosa de dizeres atribuídos a Jesus.
Deve-se ainda notar aqui a posição de G. Theissen ([5]) pondera que no Evangelho há palavras duras inspiradas por um radicalismo total no tocante ao comportamento dos discípulos; assim, por exemplo, os dizeres de Lc 14,26: “Se alguém não aborrecer seu pai, sua mãe, sua esposa e seus filhos… não poderá ser meu discípulo”. Pergunta Theissen: pode-se dizer que tais palavras são oriundas da mente das primeiras gerações cristãs? São elas condizentes com as tendências humanas mais ‘razoáveis e simpáticas’? Não devem ter tido origem na pregação mesma do Mestre? Quem as terá concebido e sustentado durante decênios sem que viessem dos lábios do próprio Jesus?
Pode-se ainda registrar um dado significativo: o vocábulo Parákletos (advogado, intercessor) só ocorre nos escritos joaneus, a saber: em Jo 14, 16s.26; 15,26s; 16,7-11.13.15; 1Jo 2,1. Ora, como só se acha em Jo e 1Jo, escritos de fins do século I ou do início do século II, os peritos do Jesus Seminar têm essa palavra como totalmente alheia a Jesus (cor preta) e oriunda no seio das primeiras comunidades cristãs de cultura helenística, que se julgavam assistidas por “Alguém” invisível (parákletos) após a partida de Cristo. Eis como se exprimem tais estudiosos: “Para a nova geração, o Evangelho promete a vinda do Espírito Divino, o advogado (vv. 16-17), cuja principal responsabilidade há de ser ‘lembrar’ aos crentes o que Jesus disse (v.26). Assim compreenderão que Jesus habita não somente com o Pai, mas também neles” (p. 452).
Ora certamente a palavra Parákletos tem chamado a atenção dos estudiosos pela sua ocorrência típica nos escritos joaneus apenas. Todavia não faltam críticos que apontam no próprio judaísmo as raízes do conceito de Paráclito (advogado, intercessor); com efeito, o judaísmo tardio falava muito de intercessores junto a Deus: anjos, patriarcas, profetas, justos… Assim S. Mowinckel, Die Vorstellungen des Spätjudentum vom Heiligen Geist als Fürsprecher und der johanneissche Paraklet: ZNTW32 (1933), 97-130; N. Johansson, Parakletos, Vostellungen von Fürsprechern für die Menschen vor Gott in der alttestamentlichen Religion, im Spät Judentum und im Urchristentum, Lund 1940.
Há também quem veja nos escritos de Qumran um antecedente do conceito de Parákletos. Sim; os monges de Qumran muito se referiam a intercessores veneráveis do passado — os Patriarcas, Moisés —, fazendo eco ao mesmo conceito encontrado nos apócrifos (livro etíope de Henoque e livro dos Jubileus). Tal é o ponto de vista de O. Betz, Der Paraklet. Fürsprecher im häretischen Spätjudentum, im Johannes-Evangelium und in neu gefundenenen gnostischen Schriften, Leiden-Köln 1963.
Donde se vê mais uma vez que é precipitada e contestável a sentença dos peritos do Jesus Seminar.
2.3. A obra de Jean Carmignac
O Pe. Jean Carmignac dedicou-se especialmente ao estudo dos manuscritos de Qumran (cf. PR 367/92, pp. 533-542); desde 1954 aplicou-se a esta análise na própria terra de Israel. Isto o levou a fundar, dirigir e redigir (quase a sós) a famosa Revue de Qumran, o único periódico do mundo inteiramente consagrado a tal tema. Em 1963 experimentou grande surpresa, que ele mesmo descreve:
‘Traduzindo e estudando aqueles textos recuperados das trevas das grutas, encontrava continuamente nexos muito claros com os Evangelhos. Dei-me conta assim de que eu poderia escrever um comentário sobre estes últimos à luz dos documentos de Qumran. Decidi começar pelo Evangelho de Marcos e, para meu uso pessoal, quis ver que som teria quando traduzido para o hebraico de Qumran…
Eu imaginava que tal tradução seria difícil e complexa, em virtude das consideráveis diferenças entre o pensamento semítico e o grego. Ao invés disso, surpreendido, logo descobri que a tradução se revelava extremamente fácil. Depois de um só dia de trabalho — era abril de 1963 — eu estava convencido de que o texto de Marcos não podia ter sido redigido em grego: na realidade, devia ser a tradução literal de um original hebraico. As grandes dificuldades que eu estava prevendo, já tinham sido resolvidas pelo tradutor original, que transpusera — palavra por palavra — o texto, conservando até a ordem dos termos requerida pela sintaxe hebraica…
Quanto mais avançava no trabalho, tanto mais — primeiro em Marcos, depois em Mateus — eu descobria que o corpo visível era helenístico, mas que a alma invisível era semítica, sem nenhuma margem de dúvida” (ib. p. 304).
A opinião de Carmignac, compartilhada por alguns estudiosos, segundo a qual o texto original dos Evangelhos é hebraico e não grego, encontra dificuldades sérias, pois obrigaria a admitir a redação dos Evangelhos ou, ao menos, dos Sinóticos antes do ano de 70 (quando Jerusalém foi destruída e os romanos expulsaram os judeus de sua terra). Todavia pode-se dizer, com certeza, que o texto grego dos Evangelhos supõe a pregação oral aramaica dos Apóstolos, fazendo ressoar aos nossos ouvidos o linguajar semita (revestido de grego) dos primeiros pregadores.
Para finalizar, note-se algo de curioso: o novo tende a redescobrir o antigo. Após procurar em fontes e ambientes helenísticos e pagãos luzes para entender os Evangelhos, a exegese contemporânea (mesmo não católica) se volta para as fontes semitas do Evangelho, mostrando a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. O Concílio do Vaticano II professou sabiamente:
“A Santa Mãe Igreja, com firmeza e máxima constância, sustentou e sustenta que os quatro Evangelhos, cuja historicidade Ela afirma sem hesitação, transmitem fielmente aquilo que Jesus, Filho de Deus, ao viver entre os homens, realmente fez e ensinou” (Constituição Dei Verbum no 19).
Apêndice
Não podemos deixar de mencionar aqui o livro do rabino Jacob Neusner intitulado no seu original “A Rabbi talks with Jesus” e traduzido para o português como “Um Rabino conversa com Jesus. Um Diálogo entre Milênios e Confissões” (Imago Editora Ltda. Rua Santos Rodrigues, 201-A, 20250-430 — Rio-RJ). Este sábio israelita defende a autenticidade dos Evangelhos e comenta o trabalho do Jesus Seminar numa entrevista concedida ao periódico 30 DIAS, janeiro 1994, pp. 51-55. Dessa entrevista extraímos alguns trechos de especial significado:
Repórter: “O senhor usou palavras muito duras para comentar a última moda exegética dos Estados Unidos, o Jesus Seminar…“
Neusner: “Creio que o Jesus Seminar é uma mistificação intelectual de gente que pretende saber coisas que é impossível saber. Antes, pensei que era uma brincadeira. Agora não penso mais assim. São pessoas que se levam muito a sério e pretendem ter uma opinião fundamentada sobre questões difíceis de ser resolvidas. Pretendem até decidir as questões com o voto. Creio que tudo isso é absurdo. É mais do que uma mistificação. Os estudos sobre o Novo Testamento que conhecemos hoje, entraram em uma ‘bancarrota intelectual’, porque deixaram de lado todo o capital de racionalidade, lógica e argumentações rigorosas que sustentam a erudição. Não se pode renunciar a todas as regras e ser levado a sério”.
Repórter: “Mas o sucesso deles é inegável. Revistas importantes como a Time e a US News dedicaram dezenas de páginas às teses deles. Como se explica isso?“
Neusner: “É o sucesso de uma operação de public relations. Vocês sabem muito bem como são os Estados Unidos… O sucesso deles não é intelectual, mas um modo de fazer publicidade e ganhar dinheiro. Mas a publicidade e a verdade não são a mesma coisa”.
Repórter: “E qual é a sua postura?“.
Neusner: “Não quero entrar em discussões muito complicadas. Mas eu pergunto por que não podemos identificar não só o Jesus da história, mas também o Jesus Cristo da fé nas coisas ditas pelo Jesus de Mateus. E pergunto: por que o Jesus dos eruditos deve ser mais importante que o Jesus que foi considerado bom por milhões de fiéis durante os séculos? A distinção entre um e outro, importante para alguns teólogos e apologetas tanto do judaísmo como do cristianismo, impressiona-me pela falta de fundamentação. Dizem que os Evangelhos apresentam muitas discordâncias, mas eu prefiro notar que durante séculos os cristãos estiveram satisfeitos com a harmonia que está presente neles… Os mesmos dados que impressionaram os estudiosos dos últimos duzentos anos, não causaram grande impressão nos fiéis dos dezoito séculos anteriores. O início da escola exegética que pretende distinguir o fato da ficção, o mito ou a lenda do evento autêntico, depende do modo como os teólogos protestantes, principalmente na Alemanha, começaram a escrever a vida de Jesus, não seguindo simplesmente a letra dos Evangelhos, mas julgando-os. Essa atitude de ceticismo sistemático cobre os Evangelhos com considerações que as gerações anteriores não tinham concebido”.
[1] “Os Cinco Evangelhos. A procura das autênticas Palavras de Jesus” (cinco Evangelhos, porque aos quatro canônicos é acrescentado o apócrifo “Evangelho de Tomé”). A Polebridge Press Book. Macmillan Publishing Company. New York 1993.
[2] The Gospel Tradition and its Beginnings. London 1957.
[3] Memory and Manuscript. Oral Tradition and Written Transmission in Rabinic Judaism and early Christianism. Uppsala 1961.
[4] “Para aprender de cor e repetir as tradições orais até serem reconhecidos como fiéis transmissores, preparavam-se repetidores oficiais, os tannaim. Partes da tradição oral eram compendiadas em resumos, kelalut, que continham o ensinamento do rabbi sobre qualquer questão proposta. Por sua vez, esses resumos eram decorados pelos seus cabeçalhos ou títulos, simanim, e inventavam-se técnicas mnemónicas mediante as quais se podiam reter esses simanim” (J. Bourke, O Jesus da história e o Cristo do Ke-rygma, em Concilium 2, 1966/1, p. 31).
[5] Wanderradikalismus. Literatursoziologische .Aspekte der Überlieferung von Worten Jesu im Urchristentum, em Zeitschrift für Theologie und Kirche 70 (1973), pp. 245-271.