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Qual a Origem e o Significado da Via Sacra?

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Por «Via Sacra» entende-se um exercício de piedade segundo o qual os fiéis percorrem mentalmente com Cristo o caminho que levou o Senhor do Pretório de Pilatos até o monte Calvário; compreende quatorze estações ou etapas, cada uma das quais apresenta uma cena da Paixão a ser meditada pelo discípulo de Cristo.

Embora semelhante exercício seja assaz antigo na história do Cristianismo, as modalidades que ele hoje em dia apresenta são recentes. Percorramos, portanto, ràpidamente o histórico da «Via Sacra» para entendermos o significado dessa prática.

Peregrinação em miniatura

Há certas devoções do povo cristão que nada mais são do que a forma simplificada de formas anteriores tidas como próprias de uma elite ou como dependentes de circunstâncias históricas ultrapassadas.

Tal é o caso, por exemplo, do Santo Rosário. Na antiga Igreja os ascetas tendiam a rezar diariamente ou, ao menos, a intervalos regulares os 150 salmos da Escritura Sagrada. Com o tempo, porém, esta tarefa tornou-se impraticável, seja porque a vida cotidiana se complicou, seja porque os fiéis foram perdendo o entendimento dos salmos; daí a substituição destes por 150 «Ave Marias» distribuídas em dezenas, cada uma das quais representa um dos mistérios de nossa Redenção (por sua vez, os salmos nos falam dos mistérios do Redentor e do seu Reino na terra).

Tal é o caso também do hábito monástico. Esta veste significa consagração a Deus e pertinência a uma família religiosa cumulada de benefícios espirituais. O uso, porém, do hábito monástico não é permitido a cristãos que vivem no século, embora eles se anexem, dentro das suas possibilidades, à dita família religiosa. Daí a redução do hábito à forma de «escapulário», peça que pode facilmente (e com notáveis vantagens espirituais) ser usada pelos seculares.

As horas canônicas ou as preces oficiais da Igreja constituem uma forma de oração muito digna e rica de sentido, mas longa e difícil para o comum dos fiéis. Em consequência, compôs-se o «Oficio Parvo» ou «mariano», acessível aos leigos mais simples, que o recitam até de cor.

Pois bem; nesta série deve-se enumerar também a Via Sacra. Já que a peregrinação aos lugares santos da Palestina é um ideal para todo cristão, ideal, porém, que poucos conseguem realizar, a Santa Igreja consentiu em que os fiéis pratiquem uma peregrinação em espírito, enriquecida de graças semelhantes às que estão anexas a uma verdadeira peregrinação. É o que se dá justamente no exercício da Via Sacra.

A este vamos agora voltar nossa atenção, considerando esquematicamente:

O histórico da devoção à Via Sacra

Desde os primórdios do Cristianismo, os fiéis dedicaram profunda veneração aos lugares santificados pela vida, a morte e a glorificação do Senhor Jesus. De longínquas regiões afluíam à Palestina, a fim de lá orar, deixando-nos em consequência suas narrativas de viagem, das quais as mais importantes na antiguidade são a de Etéria e a do peregrino de Bordéus (séc. IV). Voltando às suas pátrias, esses peregrinos não raro procuravam reproduzir, por meio de quadros ou pequenos monumentos, os veneráveis locais que haviam visitado.

A tendência a «reproduzir» se acentuou por efeito das Cruzadas (séc. XI/XIII), que proporcionaram a muitos fiéis o ensejo de conhecer os lugares santos e de se nutrir da espiritualidade dos mesmos. Então, principalmente nos mosteiros, se foram erguendo capelas ou monumentos que recordavam os diversos santuários da Terra Santa e eram objeto de «peregrinação» espiritual dos monges e das monjas que não podiam viajar em demanda do Oriente.

Conta-se, por exemplo, que a bem-aventurada Eustochium (+1491), pobre Clarissa de Messina, construiu no interior da clausura um recintozinho que lembrava a Natividade do Senhor, outro que evocava a casa de sua Mãe Santíssima, e outros mais que significavam respectivamente o monte das Oliveiras, o Cenáculo, as casas de Ana e Caifás, o pretório de Pilatos, o monte Calvário e, por fim, o Santo Sepulcro. Visitava diariamente esses monumentos e, «como se houvera assistido às cenas que eles representavam, contemplava com lágrimas a bondade do Celeste Esposo e todos os feitos deste na sua respectiva sucessão» (Wadding, Annales Minorum, ad an. 1491).

Um dos casos mais expressivos da piedade fervorosa da Idade Média é o seguinte: no mosteiro cisterciense de Louvão (Portugal), havia, provavelmente no séc. XV, uma Religiosa conversa que, antes de se consagrar a Deus no claustro, levava vida muito mortificada; entre outros atos de piedade, emitira o voto de peregrinar à Terra Santa. Tendo, porém, entrado para o mosteiro, já não podia dispor de si para empreender tal viagem; achava-se, por conseguinte, continuamente preocupada com a lembrança da promessa feita ao Senhor; os escrúpulos a torturavam. Orava, porém, e mortificava-se ardentemente, na esperança de conseguir realizar seu desígnio. Foi então que o Santo Padre o Papa promulgou um jubileu solene, concedendo aos confessores faculdades extraordinárias, inclusive a de comutar votos. A irmã, feliz, resolveu então recorrer ao confessor, pedindo-lhe comutação (embora não precisasse disto, pois sua profissão religiosa solene anulara qualquer voto de devoção). O confessor, para dar-lhe a paz de alma, respondeu-lhe que ela poderia fazer no mosteiro mesmo uma peregrinação espiritual protraída por tanto tempo quanto duraria a viagem à Terra Santa. Diante disto, a Religiosa, tendo obtido o consentimento da sua Superiora, resolveu empreender o itinerário espiritual: um belo dia despediu-se das Irmãs e cessou o intercâmbio com elas; doravante pelo prazo de um ano pôs-se a peregrinar dentro da clausura de um altar ou de um oratório para outro, identificando-os com os lugares santos que os peregrinos da Palestina costumavam percorrer; tomava suas frugais refeições depois que a comunidade sala do refeitório, deixando para os pobres a mor parte dos alimentos que lhe eram destinados; à noite dormia no chão, no lugar mesmo em que se encontrava quando tocava o sino para o repouso.

Após doze meses de tal regime, na tarde em que devia encerrar a peregrinação espiritual, a Irmã foi para a igreja, onde entrou em oração diante do Santíssimo Sacramento, com as mãos erguidas; ficou nessa atitude até a manhã seguinte, quando a Irmã Sacristã, tendo aberto a igreja, resolveu avisá-la de que os fiéis iam entrar na igreja para assistir à Sta. Missa. Eis, porém, que a «peregrina» estava morta, de joelhos, irradiando do seu semblante uma luminosidade extraordinária…

O fato causou profunda impressão nos fiéis da localidade, que mais tarde disseram ter obtido graças milagrosas por intercessão da santa Religiosa… (cf. Frei Bernardo de Brito, Primeira Parte da Chronica de Cister, 1. VI c. XXXIV foi. 463, Lisboa 1602).

Fique o episódio aqui consignado, a título de ilustração!…

De acordo com a documentação que nos resta, parece que até o século XII só havia, para os peregrinos da Palestina, guias e roteiros que orientavam a visita dos lugares santos em geral, sem focalizar de maneira especial os que diziam respeito à Paixão do Senhor; em 1187, porém, apareceu o primeiro itinerário que visava a via percorrida pelo Senhor Jesus ao carregar a cruz: é o opúsculo francês «L’éstat de la Cltéz de Jhérusalem». Somente no fim do séc. XIII começaram os fiéis a distinguir nesse itinerário etapas ou estações, cada uma das quais dedicada a um episódio do carregamento da cruz e consagrada por uma oração especial. Por causa das restrições ditadas pelos maometanos que ocupavam a Palestina, foi-se registrando, entre os cristãos, a tendência a fixar cada vez mais um programa determinado e quase invariável para a visita dos lugares concernentes à Paixão de Cristo ; no fim do séc. XIV tal roteiro comum já existia : percorria em sentido inverso a Via Dolorosa de Cristo, partindo da igreja do Santo Sepulcro (monte Calvário) para ir terminar no monte das Oliveiras (donde se vê que não havia propriamente a intenção de acompanhar em espírito Nosso Senhor na sua caminhada dolorosa).

Eis aqui o itinerário que o peregrino inglês William Wey, tendo estado duas vezes na Terra Santa (1458 e 1462), propunha sob a forma de versos mnemotécnicos (Wey, aliás, é o primeiro autor a designar como «stationes», estações, as etapas da Via Dolorosa): «Lap strat di trivium flent sudar sincopizavit Por pis lapque schola domus her Symonis Pharlsey».

A explicação latina das abreviações seria a seguinte:

1. Lápis cum crucibus super quem Christus cecidit cum cruce.

2. Strata per quam Christus transivit ad suam passionem.

3. Domus divitis negantis mi- cas dare Lazaro.

4. Trivium ubi Christus cecidit cum cruce.

5. Locus ubi mulieres flebant propter Christum.

6. Locus ubi vidua sive Verônica posuit sudarium super fa- ciem Christi.

7. Locus ubi beatíssima Maria sincopizavit.

8. Porta per quam Christus transibat ad passionem.

9. Piscina in qua aegroti sana- bantur tempore Christi.

10. Lapides super quas stetit Christus quando iudicatus erat ad mortem.

11. Locus ubi beata Maria transivit ad scolas.

12. Domus Pilati.

13. Domus Herodis.

14. Domus Simonis Pharisey.

Em tradução portuguesa :

1. Pedra com cruzes sobre a qual Cristo caiu com a cruz.

2. A estrada pela qual Cristo passou para padecer.

3. A casa do ricaço que negava as migalhas a Lázaro.

4. A encruzilhada na qual Cristo caiu com a cruz.

5. O lugar onde as mulheres choravam por causa de Cristo.

6. O lugar em que a viúva ou Verônica colocou o véu sobre a face de Cristo.

7. O lugar em que a mui bem-aventurada Maria desmaiou.

8. A porta pela qual Cristo passou para padecer.

9. A piscina onde os doentes eram curados no tempo de Cristo.

10. As pedras sobre as quais Cristo esteve quando o condenaram à morte.

11. O lugar em que a bem-aventurada Maria frequentou a escola.

12. A casa de Pilatos.

13. A casa de Herodes.

14. A casa de Simão o Fariseu

Como se vê, as estações desse itinerário estão longe de coincidir com as do exercício da Via Sacra moderno; apenas quatro estações da lista de Wey são ainda em nossos dias observadas, a saber:

4. Trivium ou o encontro com o Cireneu;

5. Flent, ou o encontro com as santas mulheres que choravam;

6. Siidariiun. ou o encontro com a Verônica;

7. Sincopizavit ou o encontro com Maria Santíssima.

As outras estações do itinerário de Wey assim se explicam:

1. «Pedra com cruzes…»: havia uma pedra assinalada por cruzes no pátio diante da igreja do Santo Sepulcro, pedra que designava o lugar em que Jesus, ao carregar a cruz, caíra pela última vez (esta estação do itinerário de Wey poderia ser identificada com a estação referente à terceira queda de Cristo no percurso hoje em dia usual).

2. «Strata»: supunha-se estar pavimentada a estrada que levava ao Calvário.

3. Alusão à parábola narrada em Lc 16,19-31.

8. Trata-se da Porta do Julgamento da antiga cidade de Jerusalém.

9. Referência à piscina probática mencionada em Jo 5,2.

10. Alusão às duas pedras talhadas que constituíam o arco do «Ecce Homo».

11. Referência à escola frequentada por Maria Santíssima.

12, 13 e 14. Alusão a casas que remotamente se prendem à história da Paixão do Senhor.

Alguns autores de fins do séc. XV, entre os quais Félix Fabri (1480), compraziam-se em afirmar que o itinerário então adotado, do Calvário ao monte das Oliveiras, era aquele mesmo que a Virgem Santíssima costumava percorrer, recordando outrora os episódios da Paixão de seu Divino Filho; tal asserção, porém, era sugerida apenas pela devoção, carecendo de fundamento na realidade histórica.

Note-se de passagem que os peregrinos da Terra Santa no fim da Idade Média davam certamente provas de extraordinário fervor, pois, para satisfazer à sua piedade, deviam submeter-se não sòmente aos perigos mortais da viagem marítima (piratas e peste), mas também a duras humilhações e dificuldades que os muçulmanos ocupantes da Palestina lhes impunham. Tal fervor não podia deixar de provocar imitadores cada vez mais numerosos entre os cristãos que estavam impedidos de empreender a viagem à Terra Santa; estes deviam experimentar o vivo desejo de substituir a peregrinação local ao Oriente por algum exercício de piedade que pudesse ser realizado nas igrejas ou nos mosteiros mesmos do Ocidente. É a esse desejo crescente que se deve o ulterior desenvolvimento do exercício do Caminho da Cruz.

O fervor levou, sim, os fiéis a querer percorrer o Caminho Doloroso do Senhor Jesus não na ordem inversa (do Calvário ao monte das Oliveiras), mas observando a sucessão mesma dos lugares e dos episódios que tecem a história da Paixão: uma narrativa de viagem devida ao sacerdote inglês Richard Torkington e datada de 1517 mostra que já nesta data os fiéis seguiam o Caminho da Cruz em demanda do Calvário, isto é, na direção mesma que Nosso Senhor tomara— o que lhes possibilitava reviver mais intensa e fervidamente as etapas dolorosas da Paixão. A partir de 1517, não se registra mais nenhum documento que refira as estações sagradas a partir do Calvário.

No Ocidente as reproduções, em pintura ou escultura, das estações da Via Dolorosa eram variadas. Algumas se contentavam com a enumeração de sete etapas, também ditas «Sete quedas de Jesus», porque em cada uma delas Cristo apareça ou prostrado por terra ou ao menos vacilante sob o pêso da cruz e desejoso de se reerguer.

Assim, por exemplo, em fins do séc. XV se enumeravam:

1) o encontro de Jesus com sua Mãe Santíssima;

2) o encontro de Jesus com o Cireneu;

3) o encontro de Jesus com as mulheres de Jerusalém;

4) o encontro de Jesus com Verônica;

5) a queda de Jesus sob a cruz, a 780 passos da casa de Pila tos;

6) a prostração do Senhor sob a cruz, a 1000 passos da casa de Pilatos;

7) a deposição de Jesus nos braços da sua Mãe Santíssima.

Podiam-se enumerar na iconografia e na devoção dos Ocidentais oito estações assim concebidas:

1) Jesus é condenado à morte;

2) Jesus cai pela primeira vez;

3) Simão o Cireneu ajuda o Senhor a carregar a cruz;

4) a Verônica enxuga a face de Jesus;

5) o Senhor cai pela segunda vez;

6) Cristo encontra-se com as filhas de Jerusalém;

7) Jesus cai pela terceira vez;

8) Jesus é despojado das suas vestes.

(Série devida a Pedro Steckx ou Petrus Potens, de Lovaina, depois que voltou de Jerusalém em 1505).

Também no século XV alguns devotos tendiam a venerar, juntamente com as sete quedas de Jesus, as sete dores de Nossa Senhora, ou as tristezas da Virgem Santíssima por contemplar, de cada vez, o seu Filho prostrado ou padecente sob a cruz.

Alguns autores ocidentais de livros de piedade ou de obras de arte sacra enumeravam por vezes 19 ou 25 ou até 37 estações na Via Dolorosa de Jesus. Parece aqui merecer especial menção o fato de que foi na Alemanha e na Holanda que nos séc. XV/XVI mais floresceu a devoção para com a Via Sacra do Senhor, ocasionando naturalmente grande número de monumentos literários e artísticos dedicados a tal tema.

Finalmente, entrou em cena na literatura ocidental um livrinho que devia pôr remate à evolução do santo exercício do Caminho da Cruz: era o opúsculo do carmelita flamengo Jan Pascha (ou Jan van Paesschen), intitulado «A peregrinação espiritual» (1563).

A viagem espiritual ai descrita devia durar um ano, sendo assinalado para cada dia uma parte determinada do roteiro «Lovaina — Terra Santa»; essa parte cotidiana era acompanhada de um tema de meditação e de exercícios de piedade. No primeiro dia, por exemplo, o peregrino imaginava que ia viajar de Lovaina a Tirlemont, e devia meditar sobre o tema «Deus, último Fim de todas as criaturas»; no segundo dia, «viajava» de Tirlemont a Tongres, e meditava sobre a criação dos anjos. etc. No 188º dia, porém, estando o «peregrino» no horto das Oliveiras a contemplar a agonia de Jesus, advertia Jan Pascha:

«Aqui começa a primeira prece da longa caminhada da cruz. As preces deste caminho são em número de quinze…»

– a segunda estação fazia-se na casa de Ana. Ao 193º dia;

– a terceira estação, ao 196° dia, no lugar em que Jesus fôra encarcerado e submetido ao escárnio da soldadesca;

– a quarta estação, ao 206º dia, se fazia no tribunal de Pilatos, onde Jesus fôra condenado;

– a quinta estação se detinha no lugar em que Jesus tomara a cruz;

– a sexta estação considerava o encontro de Jesus com sua Mãe Santíssima, assim como a segunda queda do Salvador (a primeira queda, não explicitamente venerada, se dera logo após a tomada de cruz por parte do Senhor);

– a sétima estação se dava no lugar em que o Cireneu auxiliara Jesus a carregar a cruz, tendo o Divino Mestre aí caído mais uma vez;

– a oitava estação assinalava o encontro de Jesus com Verônica e a quarta queda do Senhor;

– a nona estação cultuava o encontro de Jesus com as filhas de Jerusalém;

– a décima estação venerava a última queda do Senhor; a undécima estação considerava o despojamento de Jesus; a duodécima estação, a crucifixão;

– a décima terceira estação, a morte de Jesus sobre a cruz;

– a décima quarta estação, a deposição da cruz;

– a décima quinta estação, por fim, venerava o sepultamento do Senhor.

Observe-se que as diversas etapas acima são acompanhadas de tantas minúcias topográficas e arqueológicas que certamente a obra de Jan Pascha deve ter causado a impressão de estar baseada em documentação sólida e abundante.

Em 1584 outro autor, Adrichomius, retomava o itinerário espiritual de Jan Pascha, e dava-lhe a forma que ele hoje tem: fez, sim, começar o Caminho da Cruz no pretório de Pilatos, onde Jesus foi condenado à morte, e, para atingir o número de quatorze estações, dedicou especial veneração a mais duas pressupostas quedas do Senhor. Por obra de Pascha e Adrichomius, portanto, o exercício do Caminho da Cruz recebeu no século XVI a sua configuração atual.

Uma verificação interessante se impõe agora ao estudioso : a escolha das etapas do Caminho da Cruz, hoje usual entre os cristãos, se deve à piedade dos autores de livros de devoção escritos no Ocidente, e não à prática observada na própria Cidade Santa, ou seja, em Jerusalém (Adrichomius mesmo nunca esteve na Palestina).

O curioso fenômeno explica-se muito bem: na cidade de Jerusalém dos séc. XV/XVI não se podia pensar em assinalar aos peregrinos estações ou paradas para cultuarem as diversas fases da Via Dolorosa de Jesus. Com efeito, os cronistas da época referem que o ânimo pouco amigo dos turcos ocupantes da Terra Santa não permitia que os fiéis cristãos se detivessem diante das localidades sagradas do interior da Cidade de Jerusalém; deviam transitar com a máxima sobriedade pela estrada que o Senhor percorrera com a cruz, contentando-se com uma prece ou meditação puramente interna. Sendo assim, entende-se que em Lovaina e Nürnberg, ou na Flândria e na Alemanha em geral, o exercício da Via Sacra fosse celebrado com muito mais aparato e minúcias do que na própria Cidade Santa; foi, pois, nestas regiões, e não no Oriente, que a referida devoção tomou sua forma hodierna.

Estas circunstâncias explicam outrossim que as cenas atualmente comemoradas nas estações do Caminho da Cruz em parte sejam conjeturais: principalmente o que se refere às quedas de Jesus fica sujeito a dúvidas (lembramo-nos de que a princípio se assinalavam sete quedas, quatro das quais estavam associadas aos encontros de Jesus respectivamente com Maria Santíssima, com o Cireneu, com as piedosas mulheres de Jerusalém, com Verônica). O próprio encontro de Jesus com Verônica não é atestado pelos documentos escritos senão a partir do séc. XV; também não se tem certeza de um encontro de Jesus com sua Mãe Santíssima. É preciso observar ainda que a série na qual se sucedem os diversos episódios do. Caminho da Cruz é, por sua vez, hipotética.

Tais afirmações talvez suscitem perplexidade em um ou outro dos fiéis cristãos. A perplexidade, porém, se dissipará sem demora após uma reflexão serena sobre o assunto.

O cenário do Caminho da Cruz é proposto aos fiéis não à guisa de ensinamento histórico, para que os cristãos, mediante esse documento, enriqueçam o seu cabedal de cultura e saber. Não; as estações da Via Sacra são propostas unicamente para mover a piedade, fomentar o amor a Deus e a chama da oração. Ora parece que, dentre todas as tentativas medievais de elevar as almas a Deus mediante a meditação da Via Dolorosa de Cristo, a que mais se prestou e presta a esta finalidade é a que prevaleceu e hoje está em uso. Esta série; embora não possa reivindicar para si fidelidade histórica apoiada numa documentação critica adequada, não implica em deturpação dos valores ou dos personagens postos em cena. Sendo assim, a autoridade da Igreja pôde aprová-la; do seu lado, o cristão do séc. XX pode perfeitamente aceitá-la, não para estudar história, mas para acender o seu amor na contemplação dos atributos do Redentor que os diversos quadros da Via Dolorosa põem, do seu modo, em realce ; por conseguinte, não queira o discípulo de Cristo deduzir conclusões de historiografia ao folhear o seu manual de Via Sacra (tais conclusões seriam precárias; além do que, um tal trabalho contradiria às intenções dos autores de tais manuais, assim como às da Santa Igreja); procure, antes, prorromper em atos de fé, esperança e caridade, mediante o percurso do Caminho da Cruz (tais atos serão certamente robustos, pois o alimento sugerido pelas estações é substancioso e comprovado pela experiência dos séculos). Assim fazendo, os fiéis já não terão motivo de inquietude e escrúpulo por causa do caráter conjetural desta ou daquela estação da Via Sacra.

Ademais note-se o seguinte: para se ganharem as indulgências anexas à Via Sacra (das quais falaremos pouco adiante), requer-se que os fiéis percorram as estações assinaladas por imagens ou cruzes devidamente bentas e instaladas. É necessário, outrossim, que meditem a Paixão do Senhor, sem, porém, estarem obrigados a seguir os quatorze episódios comemorados pelas respectivas estações (qualquer maneira de meditar os sofrimentos de Cristo satisfaz às exigências, no caso).

Por fim, merece ser realçado o papel importante dos RR.PP. Franciscanos na difusão do exercício da Via Sacra. Desde o séc. XTV os filhos de São Francisco são, sim, os guardas oficiais dos lugares santos da Palestina; entende-se, pois, que de modo especial se tenham dedicado à propagação da veneração à Via Dolorosa do Senhor; em suas igrejas e junto aos seus conventos, desde fins da Idade Média, tomaram o hábito de erguer as estações da Via Sacra; adotando a série sugerida por Jan Pascha e Adrichomius, fizeram que esta prevalecesse sobre todas as congêneres; foram também os filhos de S. Francisco que obtiveram dos Papas a concessão das numerosas indulgências anexas a tal exercício de piedade. — Grande benemérito da devoção à Via Sacra é São Leonardo de Porto Maurício O.F.M., que, por ocasião de sua atividade missionária em toda a Itália, de 1731 a 1751, conseguiu erguer 572 «Vias Sacras»; foi a pedido desse santo que o Papa Clemente XII, aos 3 de abril de 1731, baixou o decreto intitulado «Monita ad recte ordinandum devotum exercitium Viae Crucls», decreto cujas normas concernentes à ereção da Via Sacra e às respectivas indulgências foram, com poucas modificações, confirmadas pela Penitenciária Apostólica aos 13 de março de-1938.

Não hesitem, pois, os fiéis em usufruir dos benefícios da Paixão do Senhor tais como são propostos pela Via Sacra, Via Sacra que deve ser realizada segundo a mentalidade dos fervorosos peregrinos da Terra Santa!

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