A respeito do primeiro texto, note-se a distinção entre noivado e casamento, pressuposta pelo Evangelista: aquele era um contrato realizado em vista deste; as leis rabínicas o valorizavam altamente: a noiva infiel era punida pela lapidação, à semelhança da esposa culpada; era equiparada a uma viúva, caso lhe morresse o noivo; o filho por ela concebido de seu noivo era considerado prole legítima. Contudo noivo e noiva não coabitavam, aguardando, para isto, o contrato matrimonial (cf. Dt 20,7).
Subentendidos estes costumes, São Mateus dá a saber que Maria concebeu durante o período de noivado, sem a participação de José, por intervenção direta do Espírito Santo (cf. 1,18). Acrescenta que, passada a perplexidade do varão justo, a quem o anjo tranquilizou, os dois noivos contraíram matrimônio e coabitaram, como o dá a entender a história da infância de Jesus (cf. Mt 1,24; 2,13. 19-22).
Será que esta coabitação implicou consórcio carnal?
A sadia exegese dos textos bíblicos, corroborada pelo continuo ensinamento da tradição cristã, leva a afirmar que não; Maria não teve filho além de Jesus, embora haja vivido sob o mesmo teto com José, que fazia as vezes de tutor do Menino Deus e de Maria. A respeito dos chamados “irmãos de Jesus”, veja-se “Pergunte e Responderemos” 3/1957 qu. 13.
Note-se ainda o sentido de Mt 1,25. A expressão que neste versículo se traduz por “enquanto ela não deu à luz” (na versão de Ferreira de Almeida: “até que deu à luz…”), corresponde ao grego héos hou e ao hebraico ad ki. Ora são conhecidas as passagens da Sagrada Escritura onde essas partículas ocorrem para designar apenas o que se deu (ou não se deu) no passado, sem se indicar o que se havia de dar no futuro. Tenha-se em vista, por exemplo:
Gên 8,7: o corvo que Noé soltou no fim do dilúvio, não voltou à arca “até que as águas secassem”. Significaria isto que depois do dilúvio a ave voltou à arca?
Salmo 109, 1: Deus Pai convida o Messias a sentar-se à sua direita “até que Ele faça dos inimigos do Messias o supedâneo dos seus pés”. Quer isto dizer que, depois de terminada a luta e vencidos os inimigos no fim da história, o Messias deixará de se assentar à direita do Pai?
Ainda hoje na vida cotidiana não se recorre a semelhante modo de falar, quando por exemplo se diz: “Tal homem morreu antes de ter executado os seus planos” ou “antes de ter pedido perdão”? Poderia alguém concluir disto que, depois da morte, o defunto executou os seus desígnios ou pediu perdão? Diz-se outrossim: “O juiz condenou o acusado antes de o ter ouvido”; seria lícito deduzir destas palavras que o ouviu depois de o ter condenado? — Estes são casos em que se faz referência ao passado prescindindo do futuro. Tal locução era frequente entre os semitas e constitui, sem dúvida, a base pressuposta do texto de Mt 1,25, como aliás bem reconhecem críticos protestantes do valor de Klostermann. Em consequência, a tradução mais clara da passagem de Mt 1,25 seria: “Sem que ele (José) a tivesse conhecido (isto é, tomado em consórcio carnal, marital), ela (Maria) deu à luz.. Analogamente diríamos para explicar as frases acima citadas: “Tal homem morreu sem ter executado seus desígnios”; “o juiz condenou o acusado sem o ter ouvido”; “as águas do dilúvio secaram sem que o corvo regressasse à arca”.
Quanto ao vocábulo “primogênito”, ele não se encontra no original de Mt 1,25, mas aí foi introduzido por influência de Lc 2.7: “Maria deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura”. O Evangelista sublinha o caráter milagroso, virginal dessa natividade, fazendo notar que Maria mesma dispensou os primeiros cuidados ao recém-nascido.
O termo “primogênito” não significa que a Mãe de Jesus tenha tido outros filhos após Ele. Em hebraico bekor, primogênito, podia designar simplesmente o “bem-amado”, pois o primogênito é certamente aquele dos filhos no qual durante certo tempo se concentra todo o amor dos pais; além disto, o primogênito era pelos hebreus julgado objeto de especial amor por parte de Deus, pois devia ser consagrado ao Senhor desde os seus primeiros dias (cf. Lc 2,22; Êx 13,2; 34.19). Mesmo fora de Israel podia-se chamar “primogênito” o menino que não tivesse irmão nem irmã mais jovem; é o que atesta uma inscrição descoberta em Tell el-Yedouhíeh (Egito) no ano de 1922; lê-se aí que uma jovem mulher, chamada Arsinoé, morreu “nas dores do parto de seu filho primogênito”. Note-se de novo nestes textos o modo de falar que observamos a respeito de Mt 1,25; “primogênito” vem a ser apenas o filho antes do qual não houve outro, não necessariamente aquele após o qual houve outros.