(Por Peter Kreeft — Integrated Catholic Life. Traduzido por Gabriel Gomes) Precisamos falar sobre “inimigos” da fé porque a vida de fé é verdadeiramente uma guerra. Assim dizem todos os profetas, Apóstolos, mártires e Nosso Senhor.
Mesmo assim, tentamos evitar falar sobre inimigos. Por quê?
Parte disso é devida ao nosso medo de confundir os inimigos espirituais com os materiais; de odiar o pecador junto com o pecado; de esquecer que “a nossa luta não é contra a carne e sangue, mas com os principados, com as potestades, com os governantes mundiais das trevas presentes, com os espíritos malignos nos céus” (Ef 6,12).
Mas esse medo é mais infundado hoje do que nunca antes na história. Nenhuma época desconfiou mais do militarismo, teve mais medo dos horrores da guerra física do que a nossa. E nenhuma época foi mais propensa a confundir o pecado com o pecador, não por odiar o pecador junto com o pecado, mas por amar o pecado junto com o pecador. Frequentemente usamos “compaixão” como um equivalente para o relativismo moral.
Nós também somos moles. Não gostamos de lutar porque lutar significa sofrimento e sacrifício. A guerra pode não ser exatamente um inferno, mas é extremamente desconfortável. E de qualquer forma, não temos certeza se há algo pelo qual valha a pena lutar. Talvez nos falte coragem porque nos falta uma razão para sermos corajosos.
É assim que pensamos como modernos, mas não como católicos. Como católicos, sabemos que a vida é uma guerra espiritual e que existem inimigos espirituais. Uma vez que admitamos isso, o próximo passo segue inevitavelmente. É essencial na guerra conhecer seu inimigo. Caso contrário, seus espiões passam despercebidos. Portanto, esta série é dedicada a conhecer nossos inimigos espirituais na luta pelo coração dos modernos. Discutiremos seis pensadores modernos que tiveram um enorme impacto em nossa vida cotidiana. Eles também causaram grande dano à mente cristã.
Seus nomes: Maquiavel, o inventor da “nova moralidade”; Kant, o subjetivista da Verdade; Nietzsche, o autoproclamado “Anticristo”; Freud, o fundador da “revolução sexual”; Marx, o falso Moisés para as massas; e Sartre, o apóstolo do absurdo.
Nicolau Maquiavel (1496-1527) foi o fundador da filosofia política e social moderna, e raramente na história do pensamento houve uma revolução mais abrangente. Maquiavel sabia o quão radical ele era. Ele comparou seu trabalho ao de Colombo como o descobridor de um novo mundo, e ao de Moisés como o líder de um novo povo escolhido que sairia da escravidão das ideias morais para uma nova terra prometida de poder e praticidade.
A revolução de Maquiavel pode ser resumida em seis pontos:
Para todos os teórico sociais anteriores, o objetivo da vida política era a virtude. Uma boa sociedade foi concebida como aquela em que as pessoas são boas. Não havia um “duplo padrão” entre bem individual e social até Maquiavel. Com ele, a política não se tornou mais a arte do bem-comum, mas a arte do possível. Sua influência neste ponto foi enorme. Todos os principais filósofos sociais e políticos (Hobbes, Locke, Rousseau, Mill, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Dewey) subsequentemente rejeitaram a virtude como um objetivo, assim como Maquiavel baixou o estandarte e quase todos começaram a saudar a bandeira recém-hasteada.
O argumento de Maquiavel era de que os sistemas morais tradicionais eram como as estrelas; bonitos, mas muito distantes para lançar qualquer luz útil em nosso caminho terreno. Em vez disso, precisamos de lanternas feitas pelo homem; em outras palavras, objetivos alcançáveis. Devemos nos orientar na terra, não nos céus; do que os homens e as sociedades realmente fazem, não do que deveriam fazer.
A essência da revolução de Maquiavel era julgar o ideal pelo real, e não o real pelo ideal. Um ideal é bom para ele, apenas se for prático; destarte, Maquiavel é o pai do pragmatismo. Não apenas “o fim justifica os meios” – qualquer meio que funcione – mas os meios até mesmo justificam o fim, no sentido de que vale a pena perseguir um fim apenas se houver meios práticos para alcançá-lo. Em outras palavras, o novo summum bonum, ou bem maior, é o sucesso. (Maquiavel soa não apenas como o primeiro pragmático, mas também como o primeiro pragmático americano!)
Maquiavel não apenas rebaixou os padrões morais; ele os aboliu. Mais do que um pragmático, ele era um antimoralista. A única relevância que ele via a moralidade tendo para o sucesso era ficar em seu caminho. Ele ensinou que era necessário para um príncipe de sucesso “aprender como não ser bom (“ O Príncipe, cap. 15), como quebrar promessas, mentir, trapacear e roubar (cap. 18).
Por causa de tais visões desavergonhadas, alguns contemporâneos de Maquiavel viram “O Príncipe” como um livro inspirado literalmente pelo diabo. Mas os estudiosos modernos geralmente o consideram como científico. Eles defendem Maquiavel alegando que ele não negou a moralidade, mas simplesmente escreveu um livro sobre outro assunto, sobre o que é ao invés de sobre o que deveria ser. Eles até o elogiam por sua falta de hipocrisia, implicando que moralidade é igual a hipocrisia.
Este é o equívoco comum e moderno de hipocrisia como não praticar o que você prega. Nesse sentido, todos os homens são hipócritas, a menos que parem de pregar. Matthew Arnold definiu a hipocrisia como “o tributo que o vício paga à virtude”. Maquiavel foi o primeiro a se recusar a pagar até mesmo esse tributo. Ele superou a hipocrisia não por elevar a prática ao nível da pregação, mas por rebaixar a pregação ao nível da prática, conformando o ideal com o real, em vez do real com o ideal.
Na verdade, ele realmente prega: “Papai, não pregue!” [1] – como a recente canção de rock. Você pode imaginar Moisés dizendo: “Papai, não pregue!” a Deus no Monte Sinai? Ou Maria para o anjo? Ou Cristo no Getsêmani, em vez de “Pai, não a minha vontade, mas a tua seja feita”? Se você puder, você está imaginando o inferno, porque nossa esperança no céu depende daquelas pessoas que disseram a Deus: “Papai, pregue!”
Na verdade, definimos erroneamente “hipocrisia”. Hipocrisia não é o fracasso em praticar o que você prega, mas o fracasso em acreditar. A hipocrisia é propaganda.
Por essa definição, Maquiavel foi quase o inventor da hipocrisia, pois ele foi quase o inventor da propaganda. Ele foi o primeiro filósofo que esperava converter o mundo inteiro por meio da propaganda.
Ele via sua vida como uma guerra espiritual contra a Igreja e sua propaganda. Ele acreditava que toda religião era uma peça de propaganda cuja influência durou entre 1.666 e 3.000 anos. E ele pensava que o cristianismo acabaria muito antes que o mundo acabasse, provavelmente por volta do ano 1666, destruído por invasões bárbaras do Oriente (o que agora é a Rússia) ou por um amolecimento e enfraquecimento do Ocidente cristão por dentro, ou ambos. Seus aliados eram todos cristãos mornos que amavam sua pátria terrena mais do que o Paraíso, César mais do que Cristo, o sucesso social mais do que a virtude. Para eles, ele dirigiu sua propaganda. A franqueza total sobre seus fins seria impraticável e o ateísmo confessado era fatal, então ele teve o cuidado de evitar a heresia explícita. Mas seu mote foi a destruição da “farsa católica” e seu meio foi a propaganda secularista agressiva. (Alguém pode argumentar, talvez de maneira rabugenta, que ele foi o pai do establishment da mídia moderna.)
Ele descobriu que duas ferramentas eram necessárias para comandar o comportamento dos homens e, assim, controlar a história humana: a caneta e a espada, propaganda e armas. Destarte, tanto mentes quanto corpos podiam ser dominados, e a dominação era seu objetivo. Ele via toda a vida e história humanas como determinadas por apenas duas forças: virtu (força) e fortuna (acaso). A fórmula simples para o sucesso era a maximização da virtu e a minimização da fortuna. Ele termina “O Príncipe” com esta imagem chocante: “A fortuna é uma mulher, e para ser submissa é preciso bater e coagir” (cap. 25). Em outras palavras, o segredo do sucesso é uma espécie de estupro.
Para o objetivo de controle, os exércitos são necessários, bem como a propaganda, e Maquiavel é um falcão. Ele acreditava que “não se pode ter boas leis sem bons exércitos, e onde há bons exércitos, boas leis inevitavelmente seguem” (cap. 12). Em outras palavras, a justiça “sai do cano de uma arma”, para adaptar a frase de Mao Tse-tung. Maquiavel acreditava que “todos os profetas armados venceram e os profetas desarmados morreram de luto” (cap. 6). Moisés, então, deve ter usado exércitos que a Bíblia falhou em relatar; Jesus, o profeta supremo desarmado, ficou triste; Ele foi crucificado e não ressuscitou. Mas sua mensagem conquistou o mundo por meio da propaganda, dos exércitos intelectuais. Essa foi a guerra que Maquiavel se propôs a lutar.
O relativismo social também surgiu da filosofia de Maquiavel. Ele não reconheceu nenhuma lei acima das de diferentes sociedades e, uma vez que essas leis e sociedades se originaram na força e não na moralidade, a consequência é que a moralidade é baseada na imoralidade. O argumento era o seguinte: a moralidade só pode vir da sociedade, uma vez que não existe Deus e nenhuma lei moral natural universal dada por Deus. Mas toda sociedade se originou em alguma revolução ou violência. A sociedade romana, e.g., a origem do direito romano, originou-se com o assassinato de Remo por seu irmão Rômulo. Toda a história humana começa com o assassinato de Abel por Caim. Portanto, o fundamento da lei é a ilegalidade. O fundamento da moralidade é a imoralidade.
O argumento é tão forte quanto sua primeira premissa, que – como todo relativismo sociológico, incluindo aquele que domina as mentes dos escritores e leitores de quase todos os livros didáticos de sociologia hodiernos – é realmente ateísmo implícito.
Maquiavel criticou os ideais cristãos e clássicos de caridade com um argumento semelhante. Ele perguntou: Como você consegue os bens que doa? Por competição egoísta. Todos os produtos são obtidos às custas dos outros: se minha fatia da torta é muito maior, a dos outros deve ser muito menor. Assim, o altruísmo depende do egoísmo.
O argumento pressupõe o materialismo, pois os bens espirituais não diminuem quando compartilhados ou doados, e não privam outro quando eu os adquiro. Quanto mais dinheiro eu ganho, menos você tem e quanto mais eu dou, menos eu tenho. Mas o amor, a verdade, a amizade e a sabedoria, quando compartilhados, aumentam em vez de diminuir. O materialista simplesmente não vê ou se importa com isso.
Maquiavel acreditava que todos nós somos inerentemente egoístas. Não havia para ele consciência inata ou instinto moral. Assim, a única maneira de fazer os homens se comportarem moralmente era pela força, na verdade, força totalitária, para compeli-los a agir contra sua natureza. As origens do totalitarismo moderno também remontam a Maquiavel.
Se um homem é inerentemente egoísta, então apenas o medo, e não o amor, pode efetivamente movê-lo. Por isso, Maquiavel escreveu: “É muito melhor ser temido do que amado … [pois] os homens temem menos fazer mal a quem se faz amado do que a quem se faz temer. O vínculo do amor é aquele que os homens, criaturas miseráveis que são, quebram quando é vantajoso fazê-lo, mas o medo é fortalecido pelo pavor do castigo sempre eficaz ”(cap. 17).
A coisa mais surpreendente sobre essa filosofia brutal é que ela conquistou a mente moderna, embora apenas após de diluir ou encobrir seus aspectos mais sombrios. Os sucessores de Maquiavel atenuaram seu ataque à moralidade e à religião, mas não voltaram à ideia de um Deus pessoal ou da moralidade objetiva e absoluta como a base da sociedade. O estreitamento do pensamento de Maquiavel veio a aparecer como um alargamento. Ele simplesmente cortou a história principal da edifício da vida; nenhum Deus, apenas o homem; sem alma, apenas corpo; nenhum espírito, apenas matéria; não dever-ser, apenas ser. No entanto, este edifício achatado apareceu (através da propaganda) como uma Torre de Babel, este confinamento apareceu como uma libertação dos “confinamentos” da moralidade tradicional, como tirar o cinto de um entalhe.
Satanás não é um conto de fadas; ele é um estrategista e psicólogo brilhante e é totalmente real. A linha de argumento de Maquiavel é uma das mentiras de maior sucesso de Satanás até hoje. Sempre que somos tentados, ele usa essa mentira para fazer o mal parecer bom e desejável; para fazer sua escravidão aparecer como liberdade e “a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” aparecer como escravidão. O “Pai das Mentiras” adora contar não pequenas mentiras, mas A Grande Mentira, para virar a verdade de cabeça para baixo. E ele sai impune – a menos que destruamos os espiões do Inimigo.
Esta é a Parte 1 de uma série de 6 partes, The Pillars of Unbelief, do Dr. Kreeft.
[1] No original “Poppa, don’t preach!”. Referência à música Papa Don´t Preach da cantora Madonna.