Este artigo é uma adaptação de uma aula que ministrei no YouTube, no canal Cooperadores da Verdade. Trata-se de um estudo que considero fundamental, não apenas por ser um dos temas mais recorrentes nas discussões apologéticas com protestantes, mas porque trata diretamente do núcleo da nossa fé: o culto devido a Deus, a veneração aos santos e a gravidade do pecado da idolatria.
Hoje, nós vamos definir claramente esses três conceitos — veneração, adoração e idolatria — e entender como a nossa fé católica lida com cada um deles. Naturalmente, esse estudo tem também uma intenção apologética muito clara: refutar, com toda a caridade e rigor possível, aquelas acusações frequentes de que nós, católicos, somos idólatras.
É importante que você compreenda que, ao conhecer bem esses conceitos, estará mais preparado para explicar, com serenidade e clareza, que a fé católica distingue perfeitamente aquilo que pertence unicamente a Deus daquilo que é devido às suas criaturas — sobretudo aquelas que, pela graça, brilharam em santidade.
O passatempo preferido dos protestantes
Infelizmente, o que se vê frequentemente em muitos ambientes evangélicos é que o passa-tempo preferido de certos pastores, pregadores e fiéis é acusar os católicos de idolatria. E aqui é preciso dizer com todas as letras: essas acusações, na maioria esmagadora das vezes, revelam não apenas um desconhecimento completo do que seja a idolatria, mas também uma grande dose de preconceito.
Muitas dessas pessoas não têm sequer uma definição precisa de “idolatria”. O que elas fazem é atribuir esse termo a qualquer prática religiosa católica que lhes pareça, aos olhos delas, excessiva. E assim surgem os exemplos mais ridículos: dizem que beijar uma estátua é idolatria; que se ajoelhar diante de uma imagem é idolatria; que carregar uma imagem num andor é idolatria; que rezar a um santo, ou pedir a intercessão da Virgem Maria, é idolatria.
Ora, se fôssemos aplicar essa mesma lógica a outras situações, veríamos rapidamente o absurdo dessa acusação. Imagine que alguém, emocionado, beija uma fotografia de um ente querido. Isso seria idolatria? Quando um filho se ajoelha diante do túmulo do pai, para rezar ou homenageá-lo, ele está praticando idolatria? Quando uma cidade carrega em festa a imagem de um herói nacional, isso é uma forma de culto pagão? É evidente que não.
Grande parte dessas acusações não vem de uma reflexão teológica ou de um estudo sério da doutrina católica. São acusações feitas no automático, com base em percepções visuais e com juízo já formado. Poucos se dão ao trabalho de perguntar o que realmente significam esses gestos, ou o que ensina oficialmente a Igreja sobre eles. E isso é algo que precisamos corrigir — não apenas para esclarecer os de fora, mas para fortalecer a fé dos católicos que, muitas vezes, não sabem responder a esses ataques por falta de formação.
O fato é que muitas pessoas simplesmente não sabem o que é adoração, o que é veneração e o que é idolatria. E sem compreender esses conceitos, é impossível fazer qualquer julgamento justo sobre a fé católica.
Por que precisamos entender?
Em primeiro lugar, porque nós mesmos corremos o risco de, por ignorância ou negligência, cair nesse erro. O pecado da idolatria é uma grave afronta a Deus — um atentado direto contra a sua soberania e glória. E não seria honesto da minha parte falar apenas dos erros dos outros, sem lembrar que também nós precisamos de vigilância, conversão e formação contínua. Ninguém está isento de errar, sobretudo quando não compreende aquilo que pratica.
Em segundo lugar, precisamos conhecer a fundo esses conceitos para sermos capazes de responder às acusações injustas que tantos católicos recebem diariamente. Eu mesmo já vi casos de jovens que estavam sinceramente se aproximando da fé, retomando a vida sacramental e a prática religiosa, mas foram desencorajados por parentes ou amigos evangélicos que os acusaram de “adorar imagens” e “trair Jesus”. Sem formação sólida, muitos se sentem abalados, entram em crise, e alguns até abandonam a Igreja.
É aqui que entra o nosso papel. Não apenas para nos defender, mas também — e talvez principalmente — para sermos luz para essas pessoas. Muitos protestantes que acusam os católicos de idolatria não o fazem por maldade, mas por desinformação. Repetem o que ouviram dos seus líderes, o que viram em vídeos na internet ou o que sempre lhes foi ensinado. Quando encontram alguém que sabe explicar com clareza, com paciência e com caridade, muitos se espantam. Alguns rejeitam. Outros ficam em silêncio. E, de vez em quando, pela graça de Deus, há quem mude de ideia.
Preciso ser sincero com você: na maioria das vezes, conversas sobre adoração, veneração e idolatria não dão resultado. É raro encontrar alguém disposto a escutar de verdade. Muitas vezes o protestante já vem com as respostas prontas, com as objeções na ponta da língua, não quer aprender, apenas vencer um debate. E, nesse caso, é bom lembrar que não vale a pena insistir. Não se deve perder tempo com quem não está aberto à verdade. Nosso Senhor mesmo nos ensinou a não jogar pérolas aos porcos (cf. Mt 7,6). Isso não é desprezo, mas prudência.
Mas isso não muda o fato de que esse assunto é um dos mais fundamentais na apologética católica. E, por isso, mesmo que os frutos nem sempre sejam imediatos, é nosso dever estar preparados. Quem ama a Igreja e deseja defendê-la precisa conhecer a fundo essas verdades. E quem ama os irmãos separados da fé, mesmo quando são agressivos ou duros conosco, também precisa ser capaz de dar razão da própria esperança, como nos exorta São Pedro: “Estai sempre prontos a responder, com mansidão e respeito, a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1Pd 3,15).
Agora, vamos ao que importa.
A veneração aos Santos
É impossível tratar com seriedade da acusação de idolatria sem antes compreender com clareza o que significa veneração. Essa palavra é muitas vezes tratada com superficialidade, mas possui um conteúdo teológico e filosófico profundo. E o primeiro passo para compreender isso é saber que a própria teologia distingue, com precisão técnica, os tipos de culto. Não é invenção recente. Não é malabarismo doutrinal. É terminologia sólida, usada há séculos pela Igreja: dulia e latria.
A palavra dulia vem do grego δουλεία (douleía), que significa “serviço” ou “servidão”. No contexto teológico, ela é usada para se referir ao culto de veneração, ou seja, à honra que prestamos às criaturas santas de Deus — aos santos, aos anjos, e, de forma especial, à Virgem Maria e a São José, como veremos mais adiante.
Já latria, do grego λατρεία (latreía), é o termo reservado exclusivamente ao culto de adoração, que só pode ser oferecido a Deus. Ambas as palavras têm ligação com a noção de serviço — inclusive no latim, servitus, e com a ideia de culto público, como a liturgia, que na origem clássica significava justamente um serviço prestado à comunidade, muitas vezes como tributo ao Estado.
Santo Agostinho, no décimo livro da obra A Cidade de Deus, trata diretamente desse tema. Ao discutir a natureza do culto, ele escreve:
“Com efeito, tal é o culto que se deve à Divindade, ou, mais expressamente, à Deidade. Para designar semelhante culto com uma palavra apenas, visto não me ocorrer nenhuma palavra latina adequada, onde for necessário usarei palavra grega para dizer o que quero: [δουλεία][latréia]. Os nossos, nas passagens em que as Santas Escrituras a empregam, traduziram-na por servidão. A servidão devida aos homens, segundo a qual manda o Apóstolo ‘sejam os servos [δοῦλοι][doúloi] obedientes a seus senhores’ (cf. Ef 6, 5), tem outro nome em grego [Dulia]. Latréia, segundo o costume com que falaram os que nos legaram a divina palavra, sempre ou quase sempre expressa a servidão pertencente ao culto a Deus. Se se diz, por conseguinte, simplesmente culto, não parece ser o exclusivo de Deus, posto também dizermos dar culto aos homens, quando lhes prestamos a homenagem de nossa presença ou de nossa lembrança.” (A Cidade de Deus, Livro X, cap. II)
Agostinho, como sempre, é de uma clareza impressionante: dulia é uma forma de reconhecimento e homenagem que pode ser prestada aos homens — sobretudo aos que, pela graça, viveram uma vida santa. Já a latria, essa sim, é a servidão devida exclusivamente a Deus, à sua majestade e à sua soberania absoluta.
Essa mesma distinção é aprofundada por Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica. Ele afirma:
“Ora, a servidão nós a devemos, por uma razão, a Deus e, por outra, ao homem; assim como também o domínio cabe a Deus e aos homens a títulos diversos. Pois, Deus tem domínio plenário e principal sobre todas as criaturas e sobre cada uma delas, que lhe estão totalmente sujeitas ao poder; ao passo que o homem tem uma certa semelhança do domínio divino, enquanto tem poder particular sobre outro homem ou sobre alguma criatura.” (Suma Teológica, II-II, q. 103, a. 3)
A conclusão que Tomás nos conduz é decisiva: o domínio de Deus é essencialmente diferente — e infinitamente superior — ao domínio que um homem pode ter sobre outro. Por isso, o culto devido a Deus (latria) é essencialmente diferente — e não apenas em grau — do culto de veneração (dulia) que podemos prestar às criaturas santas. Não se trata de mais ou menos adoração. Trata-se de realidades distintas, com naturezas e finalidades próprias. E ele resume isso de maneira magistral: “latria e dulia estão tão distantes uma da outra quanto a criatura e o Criador.”
Se essa diferença é clara para a teologia católica — desde os Padres da Igreja até os Doutores Escolásticos — por que tantos protestantes continuam acusando a veneração católica de idolatria? A resposta, infelizmente, é que grande parte deles nunca teve acesso a esse tipo de explicação. Muitos sequer ouviram os termos dulia e latria. E por isso julgam apenas pelas aparências. Um gesto exterior — como acender uma vela ou beijar uma imagem — é suficiente para que o rótulo de “idólatra” seja colado no católico, sem que se investigue a intenção interior ou a natureza do gesto.
Mas a fé cristã não se baseia em aparências. Ela se baseia na verdade. E a verdade, quando conhecida, liberta (cf. Jo 8,32).
Dulia: a honra justa devida às criaturas
Compreensão filosófica
Quando falamos de dulia, precisamos antes compreendê-la em seu sentido mais amplo e natural, anterior à sua aplicação teológica. A palavra, como já vimos, remete à ideia de serviço, mas, filosoficamente, ela se refere à honra que é devida a alguém em razão de sua excelência. E aqui é importante fazer uma distinção fundamental: essa honra não é um simples sentimento de admiração interior. Ela é a manifestação pública e exterior dessa admiração — por meio de gestos, palavras, cerimônias ou símbolos. É isso que caracteriza a dulia.
Na prática, o servo honra o seu senhor sendo-lhe obediente (Cf. Ml 1,6; Ef 6,5; Cl 3,22) . Mas essa obediência se expressa também em formas visíveis: saudações, gestos de respeito, atos de deferência. Isso está presente em todas as culturas e sociedades. A honra é, portanto, um reconhecimento social, exterior, da excelência de alguém. E por isso ela está ligada à virtude da justiça.
Na tradição filosófica clássica, especialmente em Aristóteles e depois em Santo Tomás de Aquino, a justiça é definida como a virtude pela qual se dá ao outro aquilo que lhe é devido. Ora, se alguém possui uma excelência real — seja pela sabedoria, pela coragem, pela nobreza de caráter, ou por qualquer outra virtude —, nós temos o dever moral de reconhecer isso. E esse reconhecimento, quando se manifesta de maneira pública, se chama honra. A honra, nesse sentido, é um ato de justiça.
Mas a honra não nasce do nada. Ela é precedida por um movimento interior que chamamos de reverência. Quando você admira profundamente alguém, mas guarda essa admiração no íntimo, você reverencia. Quando você transforma essa reverência em gestos, palavras ou homenagens, você honra. A reverência é o princípio da honra, e — como diz Santo Tomás — também é o seu fim, pois todo gesto público de honra visa fazer com que outros também venham a reverenciar aquele que é digno de tal homenagem.
Esse movimento é profundamente humano. Está inscrito na nossa natureza. É por isso que todas as sociedades, em todos os tempos, honraram os seus heróis — fossem eles guerreiros, reis, artistas, sábios ou fundadores de nações. Quando um atleta conquista uma medalha olímpica, ele é recebido com festas. Quando um grande compositor escreve uma obra-prima, é aclamado com aplausos de pé. Quando um chefe de Estado morre, o velório é revestido de solenidade. Tudo isso é dulia. Ninguém em sã consciência diria que essas homenagens são idolatria. Sabemos distinguir, com naturalidade, a honra devida a alguém da adoração que pertence somente a Deus.
Aliás, a incapacidade de reconhecer e expressar essa honra é, muitas vezes, sinal de um coração endurecido — tomado por inveja, orgulho ou ressentimento. Quem não consegue admirar a excelência do outro dificilmente conseguirá prestar-lhe a honra devida. E isso não é uma virtude. É um desvio. É uma cegueira moral.
A dulia, portanto, nasce da reverência (movimento interior), manifesta-se pela honra (gesto exterior), e se eleva ainda mais quando se exprime por meio de palavras. A isso damos o nome de louvor. Quando o louvor é tal que faz resplandecer as virtudes de alguém diante dos outros, chamamos de glória. Santo Tomás define a glória como “a clara manifestação da excelência de alguém.” É o brilho da honra, o reflexo da virtude nas palavras e nos gestos que a celebram.
Veja que até agora estamos falando apenas da compreensão natural desses conceitos. Ainda não entramos na teologia, ainda não falamos dos santos. Tudo isso pode ser compreendido pela razão, pela filosofia, pelo senso comum. O ser humano é naturalmente inclinado a reconhecer e celebrar a excelência alheia. Por isso, antes mesmo de discutirmos se devemos ou não venerar os santos, precisamos entender que a dulia, em sua raiz, não é uma invenção católica. É um traço do coração humano. É um reflexo da justiça. É, em última análise, um dever moral.
Compreensão teológica
Se, no plano natural, nós reverenciamos homens que se destacaram em suas áreas — atletas, escritores, empresários, artistas —, por que motivo deveríamos ter resistência em reverenciar aqueles que, pela graça de Deus, se tornaram verdadeiramente grandes no plano sobrenatural? O bom senso, inclusive, nos obriga a reconhecer que a santidade é um grau muito mais elevado de excelência do que qualquer conquista humana.
Os santos viveram nesta terra a própria vida de Cristo. Não foram apenas pessoas boas, ou virtuosas — foram homens e mulheres em quem a graça de Deus brilhou com tal intensidade que suas obras, seus pensamentos, seus sofrimentos e suas decisões se tornaram sinais da presença de Deus no mundo. Enquanto admiramos uma grande sinfonia, uma grande pintura ou até mesmo um grande feito esportivo, por que não deveríamos admirar, com muito mais razão, as obras que só a graça torna possíveis?
É justamente isso que acontece com a dulia. Ela permanece a mesma no seu princípio moral — ou seja, a disposição interior de reconhecer e prestar honra ao outro —, mas, quando aplicada aos santos, ela adquire um caráter novo: sobrenatural. Já não se trata apenas de reconhecer méritos humanos, mas de reconhecer a ação de Deus na vida de seus amigos. Como diz o Salmo: “Deus me inspirou uma admirável afeição pelos santos que habitam sua terra” (Sl 15,3). Não é apenas afeição natural; é movimento da graça.
Da mesma forma que podemos distinguir a fé natural da fé sobrenatural — aquela que resulta da razão, esta que resulta da revelação e da graça —, também é possível distinguir a dulia natural da dulia sobrenatural. A diferença essencial entre ambas está na origem: a virtude natural é adquirida, nasce do esforço e do hábito; a virtude sobrenatural é infundida, nasce da graça. A origem da dulia sobrenatural é o próprio Deus que, movendo o nosso coração, nos faz honrar aqueles que foram instrumentos da sua vontade.
Ora, se a dulia está inclusa na virtude da justiça — porque honra é uma forma de dar ao outro o que lhe é devido —, então, aplicada aos santos, ela se torna também uma forma de exercer a virtude da religião. Isso porque virtude da religião, como ensina Santo Tomás, é a parte da justiça que se refere diretamente a Deus e às coisas de Deus; ou como Royo Marín define no seu Teologia da Perfeição Cristã: “A virtude que impele o homem a dar o culto devido a Deus como o primeiro princípio de todas as coisas” (T.P.C., 392). E os santos são, por excelência, coisas de Deus: são seus instrumentos, suas testemunhas, seus amigos.
Por isso, a devoção aos santos não é um fim em si mesma. Como Santo Tomás (mais uma vez ele) afirma na Suma Teológica: “A devoção que temos para com os Santos de Deus, mortos ou vivos, não deve terminar neles, mas em Deus, através deles” (S.T., II-II, q.82, a.2). E em outro lugar lemos: “Nos santos veneramos propriamente o que eles têm de Deus, ou seja, [veneramos] a Deus neles” (T.P.C., 394). Venerar os santos é, portanto, uma forma de reconhecer a presença de Deus em suas vidas.
A analogia com os artistas ajuda a entender isso melhor. Quando aplaudimos Beethoven pela 9ª Sinfonia, ou Caravaggio pela Ceia de Emaús, ou até mesmo um jogador de futebol por um lance extraordinário, nós reconhecemos a excelência da obra. Mas muito mais, o que nos fascina não é apenas a obra em si, mas o talento e as virtudes de quem a fez.
Por isso, é necessário dizer com todas as letras: isso não tem absolutamente nada a ver com idolatria. Em nenhum momento se pretende “roubar” de Deus aquilo que só a Ele pertence: a reverência suprema, a honra absoluta, o louvor eterno, a glória infinita. Se veneramos os santos, é porque vemos neles os sinais e a obra da graça de Deus. É como contemplar a luz refletida num espelho: a beleza do reflexo não diminui em nada a glória da fonte — ao contrário, a exalta.
Dulia nas Escrituras
A Sagrada Escritura, em diversos momentos, testemunha que honrar pessoas não apenas é permitido, mas é ordenado por Deus. O exemplo mais direto e incontestável é o quarto mandamento da Lei: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20,12; Dt 5,16). Esse mandamento não foi dado por homens, mas pelo próprio Deus. Ora, se a honra devida aos pais é uma ordem divina, como alguém poderia afirmar que honrar os santos é pecado? A simples existência deste mandamento já basta para mostrar, de forma definitiva, que não há oposição alguma entre honrar criaturas e adorar o Criador. São realidades completamente distintas.
Outro exemplo comovente está no relato da morte do rei Ezequias: “Ezequias adormeceu entre seus pais e foi sepultado na parte superior dos sepulcros dos filhos de Davi. Todo o Judá e os habitantes de Jerusalém lhe prestaram as honras fúnebres” (2Cr 32,33). Aqui vemos claramente o povo prestando homenagens a um homem que havia sido, de fato, um servo fiel de Deus. Essa prática — de honrar os mortos, de reconhecer suas virtudes, de exaltar seus exemplos — permanece viva até hoje. Quando participamos de um velório, nós também prestamos honra àquela pessoa. E não vemos nisso nenhuma forma de idolatria. Pelo contrário, vemos um gesto de justiça e gratidão.
E o que dizer da saudação do anjo a Maria? “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo […] encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,28). Aqui o próprio Céu reverencia Maria. O anjo reconhece a sua plenitude de graça, e Isabel, ao recebê-la em sua casa, exclama: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,42). Em seguida, Isabel ainda a chama de “mãe do meu Senhor” (v. 43). Aqui há, sim, louvor a Maria — juntamente com o louvor a Deus. Isabel não separa uma coisa da outra. Ela sabe que, ao exaltar Maria, está glorificando o Deus que nela habita.
A Carta aos Hebreus, no capítulo 11, é praticamente uma ladainha dos santos do Antigo Testamento. O autor sagrado faz questão de lembrar os grandes feitos de Abel, Henoc, Noé, Abraão, Sara e tantos outros, todos apresentados como modelos de fé: “A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê. Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados” (Hb 11,1). E logo em seguida: “Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício bem superior ao de Caim […] Pela fé Henoc foi arrebatado, sem ter conhecido a morte […] Pela fé Noé construiu a arca […] Pela fé Abraão partiu para uma terra que devia receber em herança […] Pela fé a própria Sara cobrou o vigor de conceber”(Hb 11,4-11). Ora, isso é honra, é louvor, é veneração. A Escritura nos apresenta esses homens e mulheres como exemplo e nos convida a imitá-los. Isso é dulia.
São Paulo mesmo, com toda a humildade que lhe é própria, não hesita em dizer: “Por isso, vos conjuro a que sejais meus imitadores” (1Cor 4,16), e também: “Tornai-vos os meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). Em outra carta, ele escreve: “Irmãos, sede meus imitadores, e olhai atentamente para os que vivem segundo o exemplo que nós vos damos” (Fl 3,17), e ainda: “Sabeis perfeitamente o que deveis fazer para nos imitar […] não porque não tivéssemos direito para isso, mas foi para vos oferecer em nós mesmos um exemplo a imitar” (2Ts 3,7-9). A imitação dos santos é, portanto, uma prática bíblica e recomendada pelos apóstolos. Imitar é reconhecer a excelência. Imitar é, também, honrar.
A isso os moralistas chamam de virtude da emulação — “a qualidade dos que se deixam incentivar pelos bons exemplos dos outros e aspiram honestamente a imitá-los”, como define o Pe. Francisco Faus, em sua obra sobre a inveja. E aqui há um ponto importante: só se deseja imitar alguém que se admira. A emulação pressupõe reverência. Quem não honra, não imita. E talvez por isso possamos dizer que imitar os santos é a maior e mais perfeita forma de honrá-los. Porque não é um reconhecimento apenas verbal ou simbólico, mas um desejo de continuar a sua obra, de viver como eles viveram, de amar como eles amaram.
Dulia na Tradição da Igreja
A fé católica, enraizada na Escritura e nutrida pela vida da Igreja desde os primeiros séculos, jamais caminhou sozinha, isolada no tempo. Ela foi vivida, testemunhada e transmitida. Por isso, quando falamos em honrar os santos, não estamos diante de um costume medieval tardio, mas de uma expressão constante da fé viva do Corpo de Cristo.
Desde os primórdios, os cristãos não apenas respeitavam a memória dos que haviam selado sua fé com o sangue do martírio, mas reconheciam nesses irmãos e irmãs a presença eficaz da graça de Deus. O próprio relato do Martírio de Santo Inácio de Antioquia — redigido entre os anos 98 e 107, talvez enquanto o apóstolo João ainda estava vivo — já nos oferece um testemunho eloquente desse zelo reverente. Diz o texto que os cristãos recolheram com grande cuidado os restos mortais do santo bispo e os transportaram para Antioquia, onde os guardaram como “um tesouro inestimável deixado à santa Igreja pela graça que estava no mártir.” O uso da palavra “graça” nesse contexto não é casual: reconhecia-se que aquele corpo, outrora templo do Espírito Santo, continuava a ser sinal visível da presença de Deus, mesmo depois da morte.
Essa prática — guardar relíquias, visitar túmulos, celebrar a memória — não foi algo inventado mais tarde. Ela nasce da fé profunda na comunhão dos santos, no valor redentor do sofrimento unido ao de Cristo e na certeza de que a vida não termina com a morte. A Igreja desde cedo viu nos mártires verdadeiros testemunhos do Senhor, cuja memória era digna de honra, não por vaidade humana, mas como eco da própria glória de Deus.
Mais à frente, já no século II, encontramos em Taciano da Síria uma importante distinção que esclarece toda a teologia da veneração: “Não quero adorar a obra que por amor a mim foi feita por Ele […]. A alma que penetra a matéria [o homem], sendo como é, inferior ao Espírito Divino, não deve ser honrada do mesmo modo que o Deus perfeito.” Aqui vemos de forma clara que os primeiros cristãos sabiam distinguir entre a adoração (que é devida somente a Deus) e a honra legítima concedida àqueles que, unidos a Cristo, foram instrumentos da Sua graça. Taciano rejeita a ideia de confundir a criatura com o Criador, mas não rejeita a ideia de honrar a criatura em vista do Criador. Isso é profundamente católico.
Outro testemunho valioso vem de Dionísio de Alexandria, já no século III. Ele comenta que muitos pais cristãos batizavam seus filhos com nomes como João, Paulo e Pedro, movidos por amor e veneração a esses apóstolos. Essa prática é muito mais que cultural. Ela expressa uma forma de dulia — a honra devida aos santos — por meio da imitação e do desejo de perpetuar sua memória. E note-se: Dionísio não apresenta isso como algo novo ou controverso, mas como prática comum, aceita, respeitada. Ele vê nesse gesto uma continuidade natural da fé, o desejo de se unir espiritualmente àqueles que se uniram perfeitamente a Cristo.
Mas talvez seja Santo Agostinho quem nos ofereça o testemunho mais extenso e doutrinariamente robusto. No livro XX de sua obra Contra Fausto, Agostinho responde à acusação maniqueísta de que os católicos adoravam os mártires. Sua resposta é uma verdadeira aula de teologia e de equilíbrio doutrinal. Ele reconhece, sem hesitação, que os cristãos prestam honra religiosa à memória dos mártires, e o fazem com dois objetivos principais: estimular a imitação de suas virtudes e obter os frutos espirituais da comunhão com eles, especialmente por meio de suas orações.
Ao mesmo tempo, Agostinho é taxativo ao afirmar que não oferecemos sacrifícios aos mártires, mas somente a Deus, o Deus que os corou com a glória eterna. “O que é culto propriamente divino, que os gregos chamam de latria […] damos somente a Deus.” A clareza com que Agostinho delimita a diferença entre latria (adoração) e dulia (veneração) é absolutamente decisiva. A Igreja sempre ensinou — e viveu — essa distinção: aos santos, honra; a Deus, adoração. E toda honra legítima aos santos é, na verdade, um louvor indireto a Deus, que os santificou. Vejamos a citação completa:
“Quanto a honrarmos a memória dos mártires e a acusação de Fausto de que os adoramos […] eu não me importaria em responder a tal acusação, se não fosse para mostrar como Fausto, em seu desejo, de lançar censura sobre nós, ultrapassou todas as invenções maniqueístas e caiu em uma noção popular encontrada na poesia pagã. […] É verdade que os cristãos prestam honra religiosa à memória dos mártires, tanto para nos estimular a imitá-los como para obter a participação em seus méritos e a ajuda de suas orações. […] Mas nós construímos altares não para os mártires, mas para o Deus dos mártires, embora seja para a memória dos mártires. Ninguém no serviço no altar diz: Nós trazemos uma oferta a você, ó Pedro! Ou Paulo! Ou Cipriano! A oferenda é feita a Deus, que lhes deu a coroa do martírio, enquanto é em memória dos assim coroados. […] Consideramos os mártires com a mesma intimidade afetuosa que sentimos para com os homens santos de Deus nesta vida, quando sabemos que seus corações estão preparados para suportar o mesmo sofrimento pela verdade do evangelho. […] O que é culto propriamente divino, que os gregos chamam de latria, e para o qual não existe palavra em latim, tanto na doutrina quanto na prática, damos somente a Deus. […] Assim, nunca oferecemos, ou exigimos que alguém ofereça, sacrifício a um mártir, ou a uma alma santa, ou a qualquer anjo. Qualquer pessoa que caia nesse erro é instruída pela doutrina, seja no sentido de correção ou cautela. Pois os próprios seres santos, sejam santos ou anjos, recusam-se a aceitar o que sabem ser devido somente a Deus.”
— Santo Agostinho, Contra Fausto XX, 21
Essa perspectiva teológica — que poderia parecer complexa a uma primeira vista — é, na verdade, profundamente coerente com a própria Escritura. Em Hebreus 11, como vimos, a Palavra de Deus apresenta uma longa lista de homens e mulheres do Antigo Testamento que viveram pela fé. Ao final, o autor sagrado nos convida a correr com perseverança, tendo os olhos fixos em Jesus e sendo cercados por essa “nuvem de testemunhas” (Hb 12,1). Ora, essa nuvem não desapareceu com a vinda de Cristo. Pelo contrário, foi ampliada pelos mártires, confessores, virgens, doutores e pastores que deram continuidade à obra da fé em cada geração. Venerar os santos, portanto, é olhar para esses irmãos mais velhos e deixar-se inspirar pela sua fidelidade.
Note que embora a distinção terminológica ainda não estivesse tão clara logo no início da era pós-apostólica — isso foi se desenvolvendo com o tempo — a realidade em si já existia antes mesmo de haver consenso sobre quais livros fariam parte da Sagrada Escritura. Enquanto alguns debates ainda ocorriam sobre quais epístolas eram canônicas, os cristãos já honravam os túmulos dos mártires, celebravam suas festas, pediam sua intercessão. Isso é absolutamente decisivo: a veneração dos santos é anterior à definição formal da Bíblia, o que mostra sua origem apostólica e sua natureza profundamente eclesial.
Diante de todas essas evidências — bíblicas, patrísticas, teológicas e históricas — não resta muito espaço para objeção sincera. A veneração dos santos é uma prática plenamente razoável, profundamente bíblica e solidamente histórica na tradição da Igreja. E, mais importante: ela não diminui a glória de Deus. Pelo contrário, a exalta, pois tudo o que louvamos nos santos é reflexo direto da ação divina em suas vidas.
Negar essa verdade não é apenas rejeitar uma devoção piedosa; é fechar os ouvidos à voz da Tradição e da própria Escritura. E uma vez que a verdade se apresenta com clareza, o passo seguinte é inevitável: acolhê-la com humildade e obedecê-la com amor.
Hiperdulia: a honra à Maria
A Igreja nunca tratou todos os santos de maneira absolutamente igual. Não porque alguns tenham “mais méritos” em si mesmos do que outros — todos participam da mesma salvação em Cristo —, mas porque alguns foram mais intimamente associados ao mistério da Redenção. E, nesse sentido, ninguém foi mais unido a Cristo do que Maria, e nenhum homem esteve tão próximo d’Ele em sua vida oculta quanto José.
A veneração prestada a Maria é chamada de hiperdulia. Essa palavra pode parecer técnica, mas seu significado é profundo e necessário. A hiperdulia não é uma forma de culto essencialmente diferente da dulia, como é o caso da latria (adoração, que é devida só a Deus). A distinção entre dulia e hiperdulia é apenas de grau, não de natureza. O que isso quer dizer? Que nós veneramos Maria como veneramos os santos, mas com uma intensidade maior, pela sua dignidade única no plano salvífico de Deus.
Maria não é apenas uma serva fiel ou uma discípula exemplar. Ela foi escolhida, desde toda a eternidade, para ser a Mãe de Deus. Foi em seu ventre virginal que a segunda Pessoa da Trindade se encarnou. Como ensina o Concílio de Éfeso (431), ao proclamar Maria como Theotókos — Mãe de Deus —, a Igreja não estava apenas exaltando a Virgem: estava protegendo a doutrina da Encarnação. Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e essa união ocorre de maneira inseparável na única Pessoa do Verbo, no momento em que Maria diz “sim”.
Ora, se a encarnação do Verbo eterno se deu em Maria, então ela foi instrumento da união hipostática. Em sua carne, a humanidade e a divindade se uniram, não por mérito dela — pois tudo é graça —, mas por um privilégio singular que Deus mesmo lhe concedeu. Nenhum anjo, por mais elevado que seja, foi digno de conter Deus em si. Maria o foi. Por isso mesmo, sua dignidade ultrapassa a de todos os anjos e santos juntos. Isso não é uma opinião devocional, é doutrina firme e segura da Igreja.
Não é à toa que o Anjo Gabriel, ao saudá-la, usa a expressão “cheia de graça” (Lc 1,28) — título que, como vimos, não é genérico. Tampouco é sem razão que ela mesma, inspirada pelo Espírito Santo, proclama: “desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações” (Lc 1,48). Essa frase, tão frequentemente ignorada por muitos protestantes, não é apenas um desabafo pessoal de Maria, mas uma profecia. E nós, cada vez que a honramos, cada vez que a proclamamos bendita entre as mulheres, estamos cumprindo essa profecia. A recusa em fazê-lo, portanto, é uma forma de resistência à própria Escritura.
Honrar Maria, longe de nos afastar de Cristo, nos aproxima d’Ele. Porque tudo o que nela exaltamos é reflexo da ação salvífica de Deus. E é por isso que a Igreja, com sabedoria, reserva a ela um culto especial: a hiperdulia, ou seja, a veneração suprema entre todas as criaturas.
Protodulia: a honra a São José
Logo após Maria, temos São José. A ele, a Igreja dedica o que se chama de protodulia. Novamente, trata-se de uma forma de veneração especial, embora de grau inferior à de Maria, mas superior à de todos os outros santos. O termo protodulia indica essa precedência — uma primazia entre os que recebem a dulia. E ela é mais do que merecida.
São José foi escolhido para ser o pai nutrício de Jesus, o esposo da Virgem, o guardião da Sagrada Família. Nenhuma outra criatura pode dizer, com propriedade, que foi chamado por Jesus de “pai”. Nenhum outro homem teve o privilégio de segurar o Deus-Menino em seus braços, de ensiná-lo a andar, de trabalhar ao seu lado. Esse papel singular não passou despercebido à Igreja. Pelo contrário, foi reconhecido com clareza crescente ao longo dos séculos, culminando nas declarações dos papas, especialmente Leão XIII e Pio IX, que proclamou São José patrono da Igreja Universal.
O Evangelho de Mateus, ao descrevê-lo, diz simplesmente: “José, seu esposo, era justo” (Mt 1,19). E aqui é preciso entender o peso da palavra. Ser chamado “justo” na Escritura não é uma banalidade. No contexto bíblico, é um atestado de santidade. É o próprio Espírito Santo, inspirando o autor sagrado, quem nos dá esse testemunho: José era santo. E não apenas no sentido moral, mas no sentido mais pleno possível: um homem inteiramente aberto à vontade de Deus, obediente, fiel, humilde.
Os papeis de Maria e José na história da redenção são estudados por dois ramos especiais da teologia católica: Mariologia e Josefologia. Não como ramos paralelos ou estranho à teologia tradicional, mas como expressões legítimas e necessárias da fé na Encarnação. Porque honrar quem Deus honrou não é idolatria; é, ao contrário, reconhecimento e gratidão. E se o próprio Cristo viveu sujeito a Maria e José (cf. Lc 2,51), quem sou eu para não reconhecê-los como os maiores entre todos os santos?
Assim, compreendo que a hiperdulia e a protodulia não são invenções devocionais nem exageros piedosos. São respostas coerentes à Revelação. São fruto da fidelidade da Igreja ao mistério que ela conserva, ensina e celebra. Honrar Maria e José é, portanto, viver a fé com os olhos voltados àqueles que, mais do que ninguém, estiveram aos pés de Deus feito homem — e, mais ainda, em seu lar, em sua intimidade, em seu coração.
Latria: a adoração devida somente a Deus
Depois de compreendermos o que é a dulia, tanto em sua base filosófica quanto em sua aplicação teológica, agora precisamos nos voltar para aquilo que está no centro do culto cristão: a adoração. Se a dulia é a honra devida às criaturas santas, a adoração — ou latria — é o culto exclusivo prestado a Deus, reconhecendo a sua excelência infinita e a nossa total submissão diante d’Ele.
Teologicamente, a adoração é o ato mais elevado da virtude da religião. Ela é definida como “o ato da virtude da religião, pelo qual testemunhamos a honra e a reverência que a excelência infinita de Deus merece e a nossa submissão diante d’Ele” (T.P.C., 396). Ou seja, adorar é reconhecer a Deus como a fonte de toda a excelência, de toda a perfeição, de toda a bondade e de toda a verdade. Mas não é apenas reconhecer: é também nos colocarmos em atitude de humildade, de reverência e de entrega total.
Por isso, Santo Tomás de Aquino ensina com precisão: “Assim, a veneração, que tributamos a Deus, e que constitui a latria, não é a mesma com que veneramos a certas criaturas excelentes, e que constitui a dulia” (Suma Teológica, II-II, q. 84, a. 1). Mais uma vez, a distinção entre dulia e latria não é meramente quantitativa — como se a diferença estivesse em “quanto” se venera — mas é uma diferença essencial, porque diz respeito à natureza do ser a quem se dirige o culto: a criatura ou o Criador.
A adoração pode ser compreendida em dois níveis: o interior e o exterior. Interiormente, ela é antes de tudo um ato da alma, uma submissão do nosso intelecto e da nossa vontade a Deus. Adolphe Tanquerey, no seu Compêndio de Teologia Ascética e Mística, a define assim: “a submissão de nossa alma a Deus com todas as suas faculdades, especialmente o intelecto e a vontade […] acompanhada ou seguida pela admiração respeitosa que sentimos ao contemplar as suas perfeições infinitas” (C.T.A.M., 1047). Ninguém adora a Deus de forma autêntica se não quiser fazê-lo. A adoração verdadeira não é automática, nem exteriormente forçada — é um movimento consciente, voluntário e amoroso do coração que se reconhece criatura diante do Criador.
Mas, como todas as virtudes, a adoração também precisa ser exteriorizada. Os atos exteriores de adoração não são meras expressões decorativas. Eles completam e aperfeiçoam o ato interior. Manifestam diante dos outros — e diante de Deus — aquilo que o nosso coração já reconheceu. É por isso que a adoração pública tem um valor superior. Ela dá forma visível ao culto invisível, e insere o homem, como membro da comunidade dos fiéis, no louvor coletivo da Igreja.
O principal desses atos exteriores é o sacrifício. Sim, o sacrifício — que muitas vezes os protestantes enxergam com desconfiança ou associam a práticas do Antigo Testamento — é, na verdade, o ato por excelência da adoração cristã. Tanquerey define o sacrificio cristão como o “ato externo e social, pelo qual o sacerdote oferece a Deus, em nome da Igreja, uma vítima imolada para reconhecer seu soberano domínio, reparar a ofensa feita à sua Majestade e colocar-se em comunhão com Ele”(C.T.A.M., 1048). Aqui está a essência do culto católico: reconhecer a soberania de Deus por meio de uma oferta sagrada, feita com reverência, gratidão, reparação e amor.
Esse sacrifício é o que acontece, de forma incruenta, em cada Santa Missa. É ali que o ato de adoração atinge seu ápice. Todos os demais atos — as orações, as ofertas, os louvores, os votos, os jejuns, os atos de penitência — encontram na Missa o seu ponto de convergência. Como os córregos que desembocam em um grande rio, todas as nossas devoções particulares encontram na liturgia eucarística o seu sentido mais pleno. Como bem ensina a Constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II: “A liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte de onde emana toda a sua força” (S.C. 10).
Adorar, portanto, não é apenas cantar uma bela música, nem apenas se emocionar durante um momento de oração. Embora esses momentos possam ser espiritualmente significativos, a verdadeira adoração exige — além da entrega da alma e o reconhecimento do senhorio absoluto de Deus — a celebração de um sacrifício.
Essa é a latria. Esse é o culto de adoração que a Igreja sempre reservou exclusivamente a Deus — Uno e Trino. E é essa a chave que nos permite entender, de forma definitiva, que a veneração prestada aos santos — por mais bela e devota que seja — jamais poderá ser confundida com a adoração devida somente ao Criador.
O problema do Protestantismo
Se a adoração, enquanto virtude da religião, fosse apenas um movimento interior, então ela já seria, por si só, uma entrega incompleta. Mas a verdade é que a adoração plena requer não só a disposição interior da alma, como também a sua expressão exterior. A fé católica sempre compreendeu isso: os gestos exteriores da liturgia, os ritos, os símbolos, os sacrifícios — tudo isso são manifestações visíveis de uma realidade invisível. São o corpo dando testemunho daquilo que o espírito reconhece.
Agora, quando se elimina por completo o sacrifício como ato central do culto religioso — e é exatamente isso o que aconteceu na reforma protestante —, eu honestamente acredito que é possível dizer que já não há mais adoração verdadeira. Explico: se a adoração interior se ordena naturalmente ao culto exterior — e este culto exterior, por excelência, é o sacrifício —, ao se suprimir o sacrifício, o que resta é apenas um esboço da adoração. Um desejo, talvez sincero, mas que perdeu seu ponto de chegada. É como um rio represado: há água, mas ela não corre para o mar.
Quem rompeu com essa noção de sacrifício no culto da Igreja de um modo mais cabal foi Lutero. É curioso notar que ele ainda manteve, de alguma forma, a crença na presença real de Cristo na Eucaristia — embora tenha rejeitado a transubstanciação e adotado uma compreensão própria, chamada tradicionalmente de “união substancial” — ou em alguns casos “consubstanciação”. Mas mesmo assim, para Lutero, a Missa não era — e não podia mais ser — um sacrifício. Para ele, o único sacrifício válido era o da cruz, e qualquer celebração que fosse entendida como uma renovação sacramental deste sacrifício seria uma afronta à suficiência da cruz. Os reformadores que vieram depois seguiram essa mesma lógica, e alguns foram ainda mais radicais, negando não apenas o caráter sacrifical da Missa, mas também a própria presença real.
É por isso que muitos católicos dizem, com razão, que no protestantismo já não há verdadeira adoração. Não porque não haja sinceridade na piedade protestante — há, e muitas vezes com grande zelo —, mas porque falta o elemento essencial que define o culto de latria: o sacrifício. O culto protestante é basicamente feito de orações espontâneas, pregação da Palavra e cânticos. Tudo isso pode expressar reverência e louvor — e o louvor é, sem dúvida, um valor espiritual legítimo —, mas não há ali o sacrifício. Não há sacerdote, não há altar, não há oferenda. E sem isso, não se pode falar em adoração plena.
Talvez isso ajude a explicar por que tantos protestantes têm dificuldade em distinguir a veneração dos santos da adoração de Deus. Para eles, os gestos exteriores de respeito e reverência — como ajoelhar-se, acender uma vela, cantar hinos ou fazer uma oração — são os atos máximos da adoração. Se tudo o que se entende por adorar é cantar, orar e ajoelhar-se, então qualquer gesto semelhante feito diante de um santo parecerá adoração também. E é exatamente aí que está a confusão.
Mas a Igreja Católica sempre entendeu que a adoração vai muito além disso. Ela exige um sacrifício. E esse sacrifício é a Santa Missa. Tudo o mais que fazemos — nossas orações, nossos louvores, nossas penitências — adquire sentido pleno somente quando se une à celebração da Eucaristia, que é o único e verdadeiro sacrifício de Cristo, perpetuado sacramentalmente na história até o fim dos tempos.
O sacrifício nas outras religiões
Uma das provas mais evidentes de que o sacrifício não é um detalhe cultural, nem uma invenção de um povo específico, é o fato de que ele está presente — com raríssimas exceções — em praticamente todas as religiões conhecidas ao longo da história. Seja no mundo antigo ou nas culturas mais remotas, entre os povos mais desenvolvidos ou entre tribos isoladas, o padrão se repete: há sacerdotes, há oferendas e há sacrifícios. E mais: o sacrifício ocupa, nessas tradições, um lugar central, sendo frequentemente o ato público e principal da religião.
Isso nos revela algo profundamente enraizado na natureza humana. O homem, ao contemplar a grandeza da criação e ao reconhecer — ainda que confusamente — a existência de um Ser superior, sempre sentiu a necessidade de oferecer algo em resposta. Um dom, uma oferta, um presente sagrado. Um gesto que expressasse, de maneira pública e visível, a sua veneração por esse Ser que está acima de tudo. Trata-se de uma tendência inata, uma inclinação natural da alma humana. A razão e a intuição concordam nisso: aquilo que é superior, aquilo que é fonte de todo bem, merece ser reconhecido com atos concretos.
Esses atos, ao longo do tempo, assumiram a forma do sacrifício. E o sacrifício, para ser tal, precisa implicar uma mudança real no estado daquilo que é oferecido. Não basta apresentar uma coisa: é preciso transformá-la. Queimar, imolar, derramar sangue, consumir — esses elementos marcam a diferença entre uma simples oferenda e um verdadeiro sacrifício. O que se oferece, já não pode mais ser recuperado: foi consagrado, foi entregue, foi destruído em honra de alguém mais digno. E isso, repito, está presente nas mais variadas culturas.
Os povos indígenas, com suas oferendas à mãe-terra e aos espíritos da natureza; os gregos e romanos, com seus ritos meticulosos aos deuses do Olimpo; os chineses e egípcios, com seus sacrifícios reais ou simbólicos em honra aos ancestrais e às divindades celestes; os semitas — babilônios, assírios, fenícios —, com uma complexa teologia de sangue e holocaustos. Todos eles tinham algo em comum: compreendiam que a religião exigia um sacrifício. E que esse sacrifício não era apenas simbólico. Era, de fato, um ato sagrado e essencial para o seu culto.
O povo judeu, revelado por Deus, não rompe com essa lógica natural. Pelo contrário: ele a assume e a eleva à categoria de culto verdadeiro. O primeiro sacrifício que aparece na Bíblia é o de Caim e Abel (cf. Gn 4,3). E o texto já nos mostra, ali, que nem todo sacrifício é agradável a Deus — o que indica que o ato externo, por si só, não basta: ele precisa vir acompanhado de um coração reto. Pouco depois, vemos Abraão erguendo altares por onde passa (cf. Gn 12,7), e mais adiante, o livro do Êxodo mostra a aliança entre Deus e o seu povo sendo selada com sangue, num sacrifício solene (cf. Ex 24,5).
Com Moisés, Deus institui um sistema sacrificial minucioso, codificado especialmente no livro do Levítico. Animais eram sacrificados, sim — mas também o pão, o vinho, o incenso, as primeiras colheitas, as velas e até as palavras do sumo sacerdote, que recitava orações em nome do povo todos os dias. Cada detalhe era prescrito. Cada gesto tinha um sentido. A religião de Israel era uma religião de sacrifícios. Porque o culto autêntico, conforme a revelação de Deus, exige essa entrega. Exige esse testemunho visível de que Ele é o Senhor, e de que nós, suas criaturas, dependemos inteiramente da sua graça.
É impressionante perceber como o sacrifício, embora expresso de maneiras tão diversas, aparece como um denominador comum entre religiões tão distantes. Isso mostra que não estamos lidando apenas com um elemento cultural, mas com uma verdade antropológica profunda: o ser humano foi feito para adorar. E ele sabe, instintivamente, que adorar implica oferecer — e sacrificar.
Deus, que nos criou com essa inclinação natural, não desprezou essa linguagem. Ao contrário, Ele a assumiu e a purificou. Toda a pedagogia divina no Antigo Testamento está moldada por essa lógica sacrificial. E quando chegou a plenitude dos tempos, foi por meio de um sacrifício — o da cruz — que Ele consumou a obra da redenção. Poderia ter escolhido outro modo? Sim, sem dúvida. Cristo não foi forçado à cruz. Ele a abraçou livremente. Mas escolheu esse caminho porque o sacrifício, mais do que qualquer outro gesto, é compreensível ao coração humano. Ele fala a nossa linguagem.
Por isso, o cristianismo, que é o cumprimento da religião revelada, não abandona o sacrifício — ele o consuma. Não o substitui por gestos meramente simbólicos, nem o rebaixa à subjetividade do sentimento. O cristianismo reconhece que o culto verdadeiro exige oferta, exige altar, exige sacerdote, exige vítima. E tudo isso se realiza de maneira perfeita e definitiva em Cristo. Mas, como veremos adiante, essa perfeição não exclui a repetição sacramental: ela a exige, como meio de participação. É isso que a Santa Missa é. É isso que a verdadeira adoração cristã realiza.
O sacrifício no cristianismo
O cristianismo reconhece no sacrifício de Cristo na cruz o ápice da história da salvação. Todos os sacrifícios anteriores — fossem eles do Antigo Testamento, instituídos por Moisés, ou até mesmo os sacrifícios naturais dos povos pagãos — não passavam de sombras, figuras e prefigurações desse único e derradeiro sacrifício que o próprio Deus, feito homem, ofereceu por nós.
E aqui há algo belíssimo que toda a teologia cristã primitiva compreendeu com clareza: a cruz de Cristo é o sacrifício perfeito porque, nela, coincidem o sacerdote, a vítima e o ofertante. Cristo é o sacerdote que oferece, é a vítima que se oferece, e é também aquele a quem a oferta é dirigida — pois, sendo Deus, Ele mesmo é o destinatário último da adoração.
Como sacerdote e como vítima, Cristo age enquanto homem, mediando entre nós e o Pai. Como destinatário do sacrifício, Ele o recebe enquanto Deus, em unidade com o Pai e o Espírito Santo, pois a Trindade é indivisível. Assim, na cruz, se realiza o que nenhuma outra religião jamais pôde oferecer: um sacrifício perfeito, plenamente eficaz, absoluto, eterno. E, diferente dos holocaustos do Antigo Testamento, esse sacrifício não foi imposto, nem exigido à força. Jesus não foi assassinado como uma vítima passiva. Ele mesmo disse: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente” (Jo 10,18). Foi uma oferta voluntária.
Mas há algo ainda mais surpreendente. Esse sacrifício, embora único, não está limitado ao passado. Ele é um evento eterno, que entra no tempo, mas transcende o tempo. E é por isso que a Igreja ensina que esse mesmo sacrifício da cruz é tornado presente em cada Santa Missa. Não se trata de uma repetição ou de uma representação simbólica. Também não é um novo sacrifício, como se Cristo fosse imolado de novo. É o mesmo e único sacrifício, oferecido sacramentalmente — de modo incruento, mas real — nas espécies do pão e do vinho.
A Missa, nesse sentido, é a forma pela qual o sacrifício de Cristo continua a operar na história. A Última Ceia, celebrada na véspera da paixão, já foi a antecipação ritual da cruz. Quando Jesus disse: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós”(Lc 22,19) e “Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós” (Lc 22,20), Ele estava usando a linguagem sacrificial do Antigo Testamento. Os seus apóstolos, que conheciam a Torá, compreenderam imediatamente que estavam diante de um rito de aliança, semelhante àqueles descritos em Êxodo 24, Levítico 4 e tantos outros textos.
As palavras que Ele utilizou não deixam dúvida: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). No grego original, a palavra usada para memória é anamnesis, a mesma utilizada na Septuaginta — a versão grega do Antigo Testamento — em contextos claramente sacrificiais (cf. Nm 10,10; Hb 10,3). Essa memória não é uma simples lembrança. É uma atualização sacramental. É o tornar presente, no tempo, aquilo que permanece eternamente no céu.
Outros elementos confirmam essa dimensão sacrifical: quando Jesus fala do seu sangue como sendo “derramado” (Mt 26,28), evoca a linguagem de Levítico 4,7, que prescrevia o derramamento do sangue da vítima no altar. A expressão “dado por vós” (Lc 22,19), também, retoma o vocabulário sacrificial de ofertas prescritas na Lei, como vemos em Lucas 2,24, quando José e Maria oferecem o sacrifício prescrito pela Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos.
Tudo isso nos mostra que o Sacrifício da Missa não é uma invenção da Igreja, mas uma instituição do próprio Cristo. Ele celebrou a primeira Missa na Última Ceia, consumou o sacrifício na cruz, e ordenou aos seus apóstolos que continuassem a celebrá-lo. A Missa é, portanto, a perpetuação sacramental do Calvário. Não é um teatro. Não é um símbolo. Não é uma cópia. É o mesmo sacrifício, oferecido agora sob as espécies do pão e do vinho. Por isso dizemos que é incruento: o sangue não é derramado novamente, porque foi derramado de uma vez por todas — mas o sacrifício é real.
Durante séculos, todas as tradições cristãs reconheceram isso. A Missa — ou a Divina Liturgia, como é chamada no Oriente — sempre foi vista como o ato supremo de adoração. A latria por excelência. Somente a partir da Reforma Protestante que essa verdade começou a ser contestada com mais vigor até que fosse completamente abandonada. Mas mesmo antes da definição dogmática do Concílio de Trento, os testemunhos da Igreja primitiva já são abundantes e inequívocos.
A Didaqué, escrita no final do primeiro século, já fala da “oferta pura” que deve ser apresentada. São Clemente de Roma, São Justino Mártir, Santo Inácio de Antioquia, Santo Ireneu de Lyon — todos eles, ainda nos dois primeiros séculos, testemunham que a celebração da Eucaristia era compreendida como um verdadeiro sacrifício. E essa consciência se manteve ao longo dos séculos, com os Padres do Oriente e do Ocidente: São Cirilo de Jerusalém, São Gregório de Nazianzo, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, Santo Agostinho. Vamos conferir algumas citações:
Mas todo aquele que vive em discórdia com o outro, não se junte a vós antes de se ter reconciliado, a fim de que vosso sacrifício não seja profanado.
— Didaqué 14, 2
A oferta de flor de farinha, senhores, que os que se purificavam da lepra deviam oferecer, era figura do pão da Eucaristia que nosso Senhor Jesus Cristo mandou oferecer em memória da paixão, que ele padeceu por todos os homens que purificam suas almas de toda maldade, para que juntos demos graças a Deus por ter criado o mundo e por todo o amor que há nele pelo homem, por nos ter livrado da maldade na qual nascemos e por ter destruído completamente os principados e potestades através daquele que, segundo seu desígnio, nasceu passível. […] Assim, antecipadamente fala dos sacrifícios que nós, as nações, lhe oferecemos em todo lugar, isto é, o pão da Eucaristia e o cálice da própria Eucaristia e ao mesmo tem-po diz que nós glorificamos o seu nome e vós o profanais.
— São Justino, Mártir, Diálogos com Trifão, 41, 1-3
Situação semelhante acontece nos dias de “estação”, em que a maioria se abstém das orações do sacrificio eucarístico, porque o jejum estacional deveria ser interrompido com a recepção do Corpo do Senhor. Pode a eucaristia quebrar um serviço reverente prestado a Deus? Acaso não o une mais a Deus? Não será, acaso, mais intenso teu jejum estacional, se te pões em pé, ante o altar de Deus? Se recebes o Corpo do Senhor e o guardas em reserva, salvam-se as duas coisas: a participação do sacrificio eucarístico e o cumprimento do jejum. […].
— Tertuliano de Cartago, Da Oração, 19
Dai se manifesta que não se oferece o sangue de Cristo se faltar vinho no cálice, nem se celebra o sacrifício do Senhor com legítima santificação se não respondem à Paixão a nossa oblação e o nosso sacrifício […] Em todos os sacrificios fazemos menção da sua Paixão, pois a Paixão do Senhor é o sacrifício que oferecemos. Não devemos, pois, fazer outra coisa senão o que Ele fez.
— São Cipriano de Cartago, Carta 64, 9 e 14 e 17
Após realizado o sacrifício espiritual, culto incruento, rogamos a Deus sobre aquele sacrifício de propiciação pela paz comum das igrejas, pela sua reta ordem, pelos reis, soldados e aliados, pelos doentes e aflitos, e oramos por todos nós em geral, e oferecemos este sacrifício por todos os que necessitam de ajuda.
— São Cirilo de Jerusalém, Leituras Catequéticas
A língua do sacerdote que piedosamente se ocupou com o Senhor ergue aos que jazem enfermos. Portanto, quando desempenhas as funções sacerdotais, opera ao que é melhor e livra-nos dos pesos dos nossos pecados, ao tocar a vítima relacionada com a ressurreição […] Porém, ó Devotíssimo de Deus, não deixes de orar e advogar em nosso favor quando atraíres o Verbo com a tua palavra, quando com fração incruenta cortes o Corpo e o Sangue do Senhor, usando como espada a tua voz.
— São Gregório de Nazianzo, Carta 171, a Anfilóquio
O que não tolerou na cruz [=que lhe quebrassem as pernas], agora o tolera no sacrifício por teu amor; e permite que O fracionem [na Eucaristia] para saciar a todos.
— São João Cristóstomo, Homilia sobre 1ª Coríntios 24, 2
Portanto, a Igreja jamais ofereceu sacrifícios aos santos. Os altares, ainda que contenham relíquias dos santos e mártires da Igreja, são consagrados ao único Deus verdadeiro. E o sacrifício que ali se oferece é o de Cristo, atualizado — isto é, tornado presente — sacramentalmente, e não qualquer outra forma de culto.
É por isso que, quando um protestante acusa a Igreja Católica de idolatria, ele revela não apenas um erro teológico, mas uma incompreensão radical sobre o que é a adoração cristã. A Santa Missa é, ao mesmo tempo, o cume e a fonte de todo culto verdadeiro — porque nela está presente, de modo real e sacramental, o próprio Cristo, que continua a se oferecer por nós ao Pai, em perfeita união com o Espírito Santo.
O pecado da idolatria
Depois de compreendermos com profundidade o que significa venerar e o que significa adorar, podemos agora tratar diretamente daquilo que é, de fato, um grave pecado contra a fé: a idolatria. Este é um tema essencial, não apenas porque constitui uma das mais sérias acusações feitas contra os católicos por parte dos protestantes, mas principalmente porque se trata de uma violação direta da virtude da religião — a mais elevada das virtudes morais.
A idolatria é definida pela teologia moral como “o pecado contra a virtude da religião que consiste em prestar tributo a uma criatura o culto devido a Deus, e que constitui um pecado muito grave, de certo modo o maior de todos os que se podem ser cometidos.” (T.P.C., 403-b). Ou seja, trata-se de oferecer a algo — ou a alguém — aquilo que só pode ser oferecido ao Criador: o culto de latria, de adoração.
Esse culto indevido pode ser dirigido a diferentes realidades criadas. Pode ser uma pessoa — inclusive nós mesmos, quando colocamos a nossa vontade acima da vontade de Deus. Pode ser uma imagem — como as representações antropomórficas das divindades pagãs greco-romanas. Pode ser um objeto, uma ideia, uma ideologia. A história oferece exemplos dramáticos, como a Revolução Francesa, quando se chegou ao ponto de instituir o “Culto à Razão” dentro da Catedral de Notre Dame, ou o “Culto ao Ser Supremo”, substituindo deliberadamente o Deus cristão por uma abstração filosófica.
Mais ainda: até o próprio Deus pode ser idolatrado — quando O adoramos com uma imagem falsa Dele, moldada pelos nossos desejos ou ideologias. Idolatria não é apenas se curvar diante de uma escultura. É também reduzir Deus à imagem de um “resolvedor de problemas” ou de um “coach espiritual”, que só serve para cumprir nossos projetos pessoais. Toda distorção da verdade divina pode ser, em certo sentido, uma forma de idolatria.
A diferença entre idolatria e veneração aos santos não poderia ser mais clara. O ídolo é tratado como Deus. O santo, por outro lado, é honrado como servo fiel de Deus. A idolatria rouba para a criatura aquilo que pertence exclusivamente ao Criador. A veneração reconhece na criatura a obra da graça divina e glorifica, por meio dela, o próprio Deus. Como declarou solenemente o Concílio de Trento, na sua Sessão XXV:
“A essas imagens deve ser dada a correspondente honra e veneração, não por que se creia que nelas existe divindade ou virtude alguma pela qual mereçam o culto, ou que se lhes deva pedir alguma coisa, ou que se tenha de colocar a confiança nas imagens, como faziam antigamente os gentios, que colocavam suas esperanças nos ídolos, mas sim porque a honra que se dá às imagens, se refere aos originais representados nelas.”
Essa afirmação é suficiente para desmontar a acusação protestante de que a veneração católica é idolatria. O que se faz diante de uma imagem de um santo — rezar, acender uma vela, se ajoelhar — não é um ato de adoração, mas de intercessão e de homenagem. Não se atribui à imagem um poder divino, nem se espera dela algum milagre por si mesma. A imagem é sinal. E o culto é relativo: refere-se àquele que ela representa, e mesmo assim, não como se fosse Deus, mas como servo de Deus.
A idolatria é tão grave justamente porque a adoração é a mais elevada expressão da virtude da religião. Sendo a mais alta das virtudes morais, ofendê-la é também cometer um dos pecados mais graves. Quanto maior a dignidade do que é violado, maior a gravidade da violação. Por isso mesmo, os mártires preferiram a morte do que simular — ainda que externamente — um gesto de adoração aos ídolos. Simular adoração, apenas para salvar a própria vida, era compreendido como apostasia. Eles preferiram perder tudo, menos a fidelidade ao Deus único e verdadeiro.
Santo Tomás de Aquino ensina que a idolatria tem uma causa dupla: uma humana e outra demoníaca (Suma Teológica, II-II, q. 94, a. 4). Do lado humano, ela pode surgir de três maneiras:
“Pelo afeto desordenado, que levou os homens a atribuírem honras divinas àqueles a quem muito amavam ou veneravam.” Quantas vezes não transformamos alguém — uma figura pública, um familiar, um líder — num “deus” que não pode ser criticado, que deve ser obedecido cegamente, que ocupa o centro da nossa vida?
“Porque o homem, como diz o Filósofo, naturalmente se deleita com os produtos representativos da imaginação. Por isso, os homens rudes, primitivos, vendo imagens humanas expressivamente feitas por artistas hábeis, prestaram-lhes culto divino.” O belo, quando não é ordenado à verdade, pode desviar o olhar. A arte, quando se torna absolutizada, pode se transformar em objeto de culto. É o fascínio da forma, sem o conteúdo da fé.
“Por desconhecimento do verdadeiro Deus, cuja excelência os homens não considerando, prestaram culto divino a certas criaturas, levados pela beleza ou virtude delas.” Isso é muito comum. Uma estrela do esporte, um músico talentoso, um pensador brilhante — ao não reconhecerem a fonte de seu dom, os homens passam a adorar a criatura, esquecendo do Criador.
A causa demoníaca, por sua vez, é ainda mais séria. Os demônios, segundo o Aquinate, “provocaram para si o culto dos homens transviados, dando respostas por meio dos ídolos e fazendo outras coisas tidas pelos homens como miraculosas. Por isso a Escritura diz: ‘Todos os deuses dos gentios são demônios’.” (Sl 95,5 na Vulgata). Em muitas religiões antigas, por trás das imagens e dos oráculos havia sim uma realidade espiritual — mas não divina. Era demoníaca. E isso ainda pode ocorrer hoje, em certas seitas ou cultos esotéricos, quando se presta homenagem a forças que não vêm de Deus.
Por tudo isso, a pedagogia divina, no Antigo Testamento, exigiu uma postura extremamente prudente diante das imagens. O povo de Israel ainda primitivo, de certo modo tribal, era influenciado pelos povos vizinhos, fortemente idólatras. Assim, foi necessário, naquele momento da história da salvação, um rigor maior. As proibições do Êxodo e do Deuteronômio precisam ser compreendidas nesse contexto: não como uma condenação universal das imagens, mas como uma medida preventiva para um povo que ainda não tinha maturidade espiritual para distinguir o sinal do significado.
Como bem observa o professor Josef Wilhelm, a idolatria, em sua raiz mais profunda, nasce de uma confusão entre a causa primeira — que é Deus — e as causas segundas, isto é, os instrumentos criados por Deus para realizar a sua ação no mundo. O Homem, ao contemplar os efeitos visíveis da criação, muitas vezes esquece-se da fonte invisível de onde tudo procede.
Deus faz nascer o sol, envia a chuva e faz brotar a colheita, mas o homem, deslumbrado com os elementos da natureza, cria o deus sol, o deus chuva, o deus da agricultura. Dessa forma, ao invés de elevar o olhar ao Criador, o homem detém-se nas criaturas. Agradece os benefícios, mas esquece o Benfeitor. Honra os sinais, mas ignora Aquele que os assinalou. Assim, ao longo da história, muitos povos passaram a divinizar os meios e a esquecer o fim. Adoraram os instrumentos e abandonaram o Artífice.
Esse é o drama da idolatria: ela desloca a reverência que é devida a Deus e a deposita em algo que não é Deus. Não é preciso ser politeísta para ser idólatra. Basta colocar o coração — e o culto — naquilo que é criatura. Por isso a vigilância é necessária. E por isso a Igreja, com toda a clareza de sua doutrina, distingue a honra dos santos da adoração devida somente ao Deus Altíssimo.
Idolatria na Sagrada Escritura
A Sagrada Escritura é muito clara e coerente quando trata do pecado da idolatria. Desde o início, ela o apresenta como uma grave ofensa contra Deus, muitas vezes acompanhada de tragédias e castigos, exatamente porque não se trata de um erro pequeno, mas de uma ruptura direta com a aliança. A primeira menção explícita à idolatria ocorre em Gênesis 31,19, quando Raquel rouba os terafim — pequenos ídolos domésticos — de seu pai Labão: “Raquel roubou os ídolos do lar que pertenciam a seu pai” (Gn 31,19).
Os terafim eram figuras antropomórficas, geralmente associadas aos antepassados, e consideradas protetoras da casa. O interessante é que Labão não era um pagão no sentido pleno — ele conhecia o Deus de Abraão, o mesmo Deus de Jacó. Mas, como em muitos casos do mundo antigo, essa fé no Deus verdadeiro coexistia com uma religiosidade sincrética, na qual se adoravam também outros deuses ou se mantinham práticas supersticiosas. Era comum admitir o Deus Altíssimo, mas adorá-lo ao lado de divindades menores, como se houvesse uma hierarquia entre elas. Influenciados pelos povos vizinhos, muitos caíam nesse erro.
Um episódio emblemático ocorre em Êxodo 32, quando o povo de Israel, impaciente com a demora de Moisés no monte Sinai, exige que Arão lhes “faça um deus que os guie”. Arão recolhe os brincos de ouro do povo, funde uma imagem e então proclamam: “Este é o teu Deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito” (Ex 32,4). No versículo seguinte, Arão ainda declara: “Amanhã haverá uma festa em honra do Senhor” (Ex 32,5), e o termo usado ali é o próprio Tetragrama sagrado (YHWH) — nome exclusivo do Deus de Israel. Ou seja, é muito provável que a intenção inicial não fosse rejeitar Javé, mas representá-lo visivelmente por meio da imagem de um bezerro, algo culturalmente familiar e carregado de simbolismo no Antigo Oriente.
Entretanto, mesmo sem a intenção explícita de apostasia, o gesto configurou uma grave transgressão. A idolatria não exige, para existir, o abandono formal do Deus verdadeiro, mas pode ocorrer também pela corrupção do culto devido a Ele. E é exatamente isso que acontece aqui. O uso da imagem — mesmo como representação simbólica de um atributo divino, como a força — já violava diretamente o mandamento divino, pois, até então, Deus ainda não havia se revelado de modo visível. Em Deuteronômio 4,15-16, Deus adverte: “Guardai cuidadosamente as vossas almas, pois não vistes figura alguma no dia em que o Senhor vos falou em Horeb […] para que não vos corrompais fazendo para vós alguma imagem esculpida.”
Portanto, o erro não foi apenas o culto prestado ao objeto, mas também o próprio fato de tentar dar uma forma concreta ao Deus invisível, o que a Lei proibia terminantemente. O gesto foi ilícito desde sua origem. E como se não bastasse, o episódio rapidamente degenerou em idolatria manifesta: “Levantaram-se de manhã cedo, ofereceram holocaustos e trouxeram sacrifícios de comunhão; o povo sentou-se para comer e beber e depois se levantou para se divertir” (Ex 32,6). O termo hebraico aqui traduzido por “divertir-se” pode implicar comportamentos desregrados, até mesmo lascivos — o que indica que o culto se corrompeu não só na forma, mas também nos costumes.
O Novo Testamento retoma esse episódio como um alerta: “Não vos torneis idólatras, como alguns deles, conforme está escrito: O povo sentou-se para comer e beber, e levantou-se para se entregar à diversão” (1Cor 10,7). A crítica de São Paulo deixa claro que não se tratava apenas de um erro simbólico ou de uma imprecisão catequética, mas de uma verdadeira substituição do culto a Deus por um culto material e sensível.
Esse episódio nos ensina uma verdade importante: antes da Encarnação do Verbo, nenhuma representação visível de Deus era permitida, mesmo sob forma simbólica. A transcendência divina exigia absoluto respeito. Foi somente após Cristo — imagem perfeita do Deus invisível (cf. Cl 1,15) — que passou a ser legítimo representar o invisível na forma visível, pois Deus, por sua livre iniciativa, nos deu um rosto que pode ser contemplado.
Ao longo da história de Israel, infelizmente, a idolatria se repetiu muitas vezes. Um exemplo doloroso é registrado em Juízes 2,11: “Os israelitas fizeram então o que é mau aos olhos do Senhor e serviram a Baal.” Essa infidelidade ao Senhor da aliança — que os tirou do Egito, os conduziu pelo deserto e lhes deu uma terra — foi a principal causa das calamidades que se abateram sobre o povo. O pecado da idolatria é visto, em toda a Bíblia, como adultério espiritual: um rompimento da relação de amor e fidelidade entre Deus e o seu povo.
É justamente por isso que Deus, ao dar os Dez Mandamentos, estabelece com firmeza: “Não terás outros deuses diante de minha face. Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima nos céus, ou embaixo sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto” (Ex 20,3-5). Essa passagem é frequentemente citada por protestantes para acusar os católicos de idolatria, mas quase nunca é lida com atenção ao seu real contexto.
De fato, o mandamento proíbe explicitamente o culto prestado às imagens, ou seja, a latria dirigida a qualquer criatura ou representação sensível. Mas é importante notar que, à luz da revelação progressiva, outra dimensão também está presente: no tempo da Antiga Aliança, o próprio ato de representar a divindade em forma visível — mesmo como símbolo de seus atributos — era igualmente vedado, pois Deus ainda não havia se revelado sensivelmente. Assim, tanto o culto quanto a tentativa de dar forma visível ao Deus invisível eram expressamente proibidos.
Mais adiante, no próprio livro do Êxodo, Deus ordenará a confecção de imagens — como os querubins na Arca da Aliança (cf. Ex 25,18) — mas essas não eram representações da divindade, nem objetos de culto. A distinção é fundamental. O que sempre esteve proibido foi adorar uma imagem como se fosse Deus, ou representar Deus de forma sensível antes que Ele mesmo se manifestasse em carne, na plenitude dos tempos.
A própria antropologia bíblica confirma isso. Em Gênesis 1,26, Deus diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” A imagem, por si só, não é má — ao contrário, é um elemento essencial do modo como Deus se comunica com o mundo. O problema está em confundir a imagem com o que ela representa. Em Colossenses 1,15, São Paulo afirma que Cristo “é a imagem do Deus invisível.” Ora, se toda imagem fosse necessariamente um ídolo, como explicar que o próprio Verbo encarnado é chamado de “imagem”?
O Novo Testamento, ao reiterar os mandamentos, nunca repete a proibição das imagens. Isso porque, em Cristo, a pedagogia da fé atingiu sua plenitude. Agora podemos contemplar Deus em seu próprio rosto, visível e tangível. Como disse São João: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória” (Jo 1,14). A encarnação é, por excelência, a consagração do visível.
Por tudo isso, é fundamental distinguir a idolatria verdadeira da veneração legítima. A idolatria, na Bíblia, sempre envolve o culto indevido — latria — prestado a uma criatura. A veneração, por outro lado, jamais é condenada. Pelo contrário, há ordens explícitas de honrar pai e mãe, de reverenciar os anciãos, de respeitar os reis e os profetas. O que a Escritura condena não é a honra, mas o culto divino prestado a quem não é Deus — ou mesmo o culto a Deus prestado de forma ilegítima, como no caso do bezerro de ouro, em que se tentou representar o Senhor por uma imagem proibida, corrompendo assim o verdadeiro culto e substituindo a fé pela fantasia humana. Jamais se confundiu, na teologia católica, a honra relativa que se presta aos santos com o culto absoluto de adoração que pertence exclusivamente à Santíssima Trindade.
Idolatria na Tradição da Igreja
O testemunho da Tradição da Igreja é igualmente claro e firme quanto à distinção entre veneração legítima e idolatria condenável. Desde os primeiros séculos, os cristãos se preocuparam em preservar a pureza do culto, mas também em conservar e transmitir, com fidelidade, as práticas de honra aos santos e às imagens sagradas, em perfeita consonância com a fé na Encarnação e com a doutrina apostólica.
Entre os primeiros escritores cristãos que trataram com seriedade da questão da idolatria, encontramos Tertuliano. No final do século II e início do século III, ele escreveu um tratado inteiro intitulado De Idololatria, no qual aborda as muitas formas de idolatria presentes no ambiente pagão da época e adverte os cristãos a respeito dos perigos de se comprometer com práticas que, ainda que pareçam culturalmente aceitáveis, possam conter elementos idolátricos. A obra é severa, como é característico do autor, e revela um zelo profundo pela santidade do culto cristão. Tertuliano não se limita a criticar o culto aos deuses falsos, mas denuncia até mesmo a colaboração indireta dos cristãos com atividades que favorecessem a idolatria — como trabalhar em profissões que confeccionassem imagens pagãs ou participar de festas religiosas do império. A sua preocupação revela o quanto os primeiros cristãos compreendiam a gravidade do pecado de idolatria e o compromisso radical exigido pela fé em Cristo.
No entanto, o mesmo zelo contra a idolatria não impediu a Igreja, desde muito cedo, de conservar relíquias dos mártires, de construir memoriais sobre seus túmulos, de rezar junto às suas sepulturas, e, mais tarde, de representar suas imagens nas catacumbas, nas basílicas e nos altares. Não há aqui nenhuma contradição: os cristãos sabiam distinguir entre o culto de latria, que só se deve a Deus, e a dulia, que é a honra prestada aos amigos de Deus. Essa distinção, como já vimos, não é apenas teológica, mas profundamente enraizada na Escritura e no senso comum da justiça.
No século VIII, quando a heresia iconoclasta ameaçou devastar a vida litúrgica e sacramental da Igreja do Oriente, foi São João Damasceno quem se levantou com clareza e coragem para defender o uso das imagens sagradas. Escrevendo sob a perseguição do imperador Leão III, que ordenara a destruição dos ícones, São João compôs uma apologia monumental em favor das imagens, que se tornou referência definitiva sobre o assunto. Nela, ele afirma com profundidade:
“Antes, Deus, que é incorpóreo e sem forma, nunca foi representado por uma imagem. Mas agora, como Deus foi visto na carne e viveu entre os homens, eu represento o que é visível em Deus. Não adoro a matéria, mas adoro o Criador da matéria, que por minha causa se fez matéria e dignou-se habitar na matéria, que operou a minha salvação por meio da matéria.”
(São João Damasceno, Discurso contra os que rejeitam as imagens sagradas, I,16)
Essa citação encerra uma teologia profundamente encarnacionista: se Deus assumiu a matéria, então a matéria pode, legitimamente, tornar-se sinal da sua presença. O que antes era invisível e irretratável, agora pode ser contemplado. O Verbo se fez carne, e por isso pode ser representado com tinta, madeira, pedra, ouro ou mosaico. A honra prestada à imagem não termina nela, mas é referida ao protótipo, àquele que é representado — e, no caso de Cristo, é referida ao próprio Deus feito homem.
São João Damasceno foi canonizado e proclamado Doutor da Igreja justamente por sua defesa vigorosa dessa doutrina. Seu ensinamento foi acolhido e confirmado pelo Segundo Concílio de Niceia, em 787, que declarou solenemente:
“Prestamos veneração às imagens, não porque acreditamos que haja nelas alguma divindade, mas porque a honra que se dá à imagem passa para o protótipo. E quem venera uma imagem, venera nela a pessoa que ela representa.”
(Concílio de Niceia II, ano 787)
Esses testemunhos mostram com toda clareza que a Igreja nunca ensinou, nem praticou, a idolatria. Ao contrário: sempre combateu os erros idolátricos, ao mesmo tempo em que reconheceu a legitimidade e o valor das expressões visíveis de honra e veneração aos santos, especialmente à Virgem Maria, como reflexos da glória de Deus e como meios de conduzir os fiéis ao culto verdadeiro.
Conclusão
Depois de tudo o que vimos até aqui, torna-se evidente a importância de conhecermos bem os conceitos de veneração, adoração e idolatria. E não apenas para podermos nos defender de acusações injustas, mas principalmente para vivermos com mais consciência e retidão a nossa própria fé. Afinal, uma das principais causas da confusão religiosa — dentro e fora da Igreja — é a ignorância. Às vezes, o problema não está na fé em si, mas no entendimento que se tem dela. Quando os termos são mal definidos, os argumentos se tornam frágeis, e as conclusões acabam sendo injustas ou absurdas.
É muito comum que nossos irmãos protestantes acusem os católicos de idolatria por verem gestos externos — como ajoelhar-se diante de uma imagem, beijá-la ou carregá-la em procissão — e os interpretarem como adoração. Mas vimos com clareza, tanto pela Escritura quanto pela Tradição, que esses atos não têm em si mesmos valor absoluto. O que os define é a intenção, o contexto e, sobretudo, a teologia que os sustenta. Um protestante pode ajoelhar-se para pedir a mão da noiva em casamento, pode para cantar o hino da sua pátria ou mesmo do seu clube de futebol com profunda reverência — e isso não é idolatria. Por que, então, ajoelhar-se para rezar diante de uma imagem de um santo o seria? A diferença está na disposição interior e no significado que se dá ao gesto, e esse significado está enraizado na fé da Igreja, que é pública, clara e coerente.
Ao tomar conhecimento de tudo isso, um protestante pode continuar discordando da doutrina católica. Pode não aceitar a intercessão dos santos, pode não compreender a liturgia da Igreja, pode até manter sua crítica às práticas devocionais — isso é do jogo. Mas, a partir daqui, ele não pode mais nos chamar de idólatras. Não honestamente. Não com base na doutrina da Igreja. Pode acusar-nos de exagero, de equívoco, de erro — mas não de idolatria. Essa acusação só se sustenta na ignorância do que realmente ensinamos, vivemos e cremos.
Por isso é tão importante voltarmos aos fundamentos. A veneração é a honra prestada às criaturas, especialmente àquelas que, pela graça, cooperaram heroicamente com o plano de Deus. A adoração é a honra prestada somente a Deus, na forma mais elevada da virtude da religião. A idolatria, por sua vez, é a corrupção dessa virtude: é prestar a uma criatura aquilo que só se deve ao Criador. E esse pecado, sim, deve ser evitado com todo o zelo — porque distorce a imagem de Deus e perverte o culto que Lhe é devido.
Se compreendermos isso com clareza, não apenas saberemos nos defender, mas também poderemos ajudar outros a entender melhor a beleza e a coerência da fé católica. E, quem sabe, ser instrumento para que muitos voltem à Casa do Pai — não por força de um debate vencido, mas pela luz de uma verdade que finalmente se tornou compreensível.
Peço a Deus que este estudo tenha ajudado você a compreender melhor a beleza da nossa fé. Se você é católico, que isso reforce sua confiança na doutrina da Igreja. Se é protestante, que ao menos sirva para desfazer um mal-entendido comum. E se você é alguém em busca da verdade, que essas linhas sejam um sinal do amor de Deus que continua a falar ao coração de quem deseja conhecê-Lo. A Ele, toda honra, toda glória e toda adoração. Amém.